A origem do Carnaval

Através da celebração das grandes colheitas, alguns povos da Antiguidade (como hebreus, egípcios, gregos e romanos) já celebravam o Carnaval, louvando suas divindades pela fertilidade do solo. Já se acreditou que a etimologia da palavra "carnaval" remontasse a "carrum navalis" (carro naval). Essa origem, porém, já foi contestada, e  atualmente a versão mais aceita é a que liga "carnaval" a "carne vale" (ou seja, "adeus à carne").


("A juventude de Baco", de William Adolphe Bouguereau, 1884 - Fonte: Wikipedia)


Hiram Araújo, autor do livro "Carnaval: seis milênios de história" (Gryphus, 2002) comenta que o Carnaval celebrado na Antiguidade era uma celebração na qual eram "marcados pela licença sexual e pela inversão dos papéis entre servos e senhores, como também pela escolha de um escravo real que era sacrificado no final da celebração." Na Grécia Antiga, por exemplo, eram realizadas as famosas Festas Dionísicas, celebrações em homenagem a Dionísio. (Seu equivalente romano é Baco, o deus do vinho, sendo a ele atribuído os excessos sexuais). Além da festa ao deus Baco, celebrava-se também a Saturnália, onde os principais valores sociais da época eram invertidos e todo o tipo de prática era realizada sem entraves sociais e tabus chegando até ao sacrifício humano. A comemoração durava cerca de três dias e todo o tipo de atividade escolar e comercial era encerrada. Já na Idade Média, as Bachanalias (deriva daí o termo "bacanal") e Saturnalias eram realizadas uma vez ao ano. Neste período, em que a Igreja começava cada vez mais a exercer seu papel social e político, essas celebrações de origem pagã ganharam conotação negativa dentro dos parâmetros religiosos. Algumas intervenções por parte da Igreja foram realizadas, como tentativa de reduzir a prática das festas, consideradas abomináveis pelo Catolicismo.


("The Mardi Gras March & Two-Step", capa de um livro de partituras, publicada em 1897
por E.T. Paull Music Co, Nova Iorque - Fonte: Internet)


Em 590 d.C. o papa Gregório I instituiu a festa do Carnaval no calendário eclesiástico. Suportado com certa tolerância pela Igreja (no século XV, o papa Paulo II foi uma das figuras religiosas mais tolerantes à prática do Carnaval, permitindo que se realizassem comemorações na Via Ápia, rua próxima ao seu palácio), o Carnaval tornou-se uma das poucas festas que mantiveram suas origens pagãs após indexação católica, restringindo-se aos dias que antecedem o início da Quaresma. (Em contraste com a Quaresma, tempo de penitência e privação, os três dias do Carnaval são chamados "gordos" - em especial a terça-feira, conhecida como terça-feira gorda; em francês, Mardi Gras). "Quando o cristianismo chegou, já encontrou as festas, ditas orgiásticas, em uso nos povos. Por seus caracteres libertinos e pecaminosos, foram a principio condenadas pela Igreja Católica. Teólogos, doutores e papas da Igreja, como São Clemente de Alexandria (escritor e doutor da Igreja - 150-213 d.C), Tertuliano (teólogo romano, Cartago -155-216 d.C, grande pensador polemista dos primeiros séculos da Igreja, combateu tenazmente o relaxamento dos costumes); São Cipriano (Bispo e mártir; padre da Igreja latina, Cartago, iniciado no século III. Foi decapitado por ocasião das perseguições de Valério); Inocêncio II (Papa, Roma - 1130-1140), entre outros, foram contra o carnaval." (1)

Em um artigo para a revista História Viva #35 (Dezembro, 2011) o romancista francês Édouard Brasey conta que na noite de 1º de janeiro de 1091, Walchelin, um jovem clérigo que servia na igreja de Bonneval, França, teria testemunhado um imenso exército, reconhecendo pessoas recentemente falecidas que não haviam tido tempo de se arrepender de por seus crimes. Segundo ele, a tropa era negra e cuspia fogo. Walchelin teria então interpretado que essa horda apavorante de almas seria a famosa lenda da tropa Hellequin. Walchelin teria assistido "ao desfile de cortesãs da cavalaria, colocadas sobre celas cheias de pregos incandescentes. Esses pregos em brasa feriam-lhes as nádegas e, horrivelmente atormentadas por essas picadas e esses ferimentos, elas gritavam: 'Ai de mim!' 'Ai de mim!', e confessavam diante de todos os pecados pelos quais sofriam tais castigos." Brasey ainda afirma que "o grupo liderado por Hellequin, na pena do monge cristão, não seria portanto senão uma 'caçada ao diabo', no qual os pecadores impenitentes eram arrastados depois de sua morte para expiar seus crimes." Como forma de aumentar o número fiéis através de conversões em massa ao catolicismo, "o espetáculo servia de advertência aos vivos que não se arrependessem a tempo", completa. 


(À esquerda, Arlecchino, ou Arlequim, um personagem do teatro popular italiano inspirado na lenda de uma tropa de pecadores. À direita, o personagem do romance gráfico "V de Vendetta", de Alan Moore, em um fragmento do longa-metragem - Fonte: Revista História Viva #35 - clique para ampliar)


A máscara de Arlequim (um dos adornos tradicionais da festa carnavalesca da cidade de Veneza, na Itália) e a máscara do personagem de codinome "V" (do romance gráfico "V de Vendetta" - "V de Vingança", de   Alan Moore) possuem aspectos convergentes. Apesar da obra de Moore conceber "V" dentro de um universo ficcional com forte influência na Conspiração da Pólvora (o longa dirigido por McTeigue traz, inclusive, a rima tradicional em alusão a Contra-reforma: "Remember, remember, the 5th of November" - "Lembrai, lembrai, o cinco de novembro"), também é possível estabelecermos algum paralelo entre "V" e a tropa Hellequin, na medida em que as duas narrativas têm a liberdade como principal temática. Temos em "V" um misterioso anarquista com intenções de destruir o Estado através de ações diretas. Já o ideal libertário de Hellequin, segundo o medievalista Jean-Claude Schmitt, em seu estudo "Les revenants, les vivants et les morts dans la société médievale" ("Os que retornam, os vivos e os mortos na sociedade medieval") estaria presente em sua etimologia: "não resta dúvida de que o nome Hellequin (ou Herlequin ou Helething), que aparece primeiro na Normandia e depois na Inglaterra, seja de origem germânica e faça referência ao exército (heer) e à assembléia dos homens livres (thing)."


(Foliões durante o Carnaval vestindo formas primitivas das máscaras larva, chapéus e véus, de Giacomo Franco, 1610 - clique para ampliar - Fonte: Museu Britânico)


Brasey ainda estabelece uma interessante relação entre o Carnaval e a cavalgada das almas danadas narrada pelo jovem padre: "Walchelin a situa na noite de 1º de Janeiro. Mas o fenômeno sobrenatural evoca também os rituais folclóricos medievais ligados ao carnaval, nos quais as pessoas queimam simbolicamente os temores do inverno, enquanto se entregam a excessos, desafiando as regras sociais e religiosas antes de iniciar o austero período de Quaresma." Dessa forma, talvez Walchelin tivesse testemunhado o ritual carnavalesco medieval, uma vez que o uso de máscaras durante essa data festiva data de aproximadamente 30.000 anos a.C. As máscaras eram ornamentadas para ser usadas em celebrações, cultos e rituais de povos primitivos. Durante a Antiguidade, por exemplo, os egípcios acreditavam que a colocação de uma máscara na face dos mortos ajudava na passagem para a vida eterna. Um tratado datado de 22 de Fevereiro de 1339, proibia os mascarados de vaguearem pela noite nas ruas da cidade. Seu uso, contudo, era permitido durante todo o Carnaval, exceto nas festas religiosas. Durante todas as manifestações importantes, como as festas republicanas, era consentido o uso dos trajes venezianos, que compunham o uso das máscaras.


(Máscaras e fantasias tradicionais do Carnaval de Veneza, Itália - Fonte: Internet)


Stuart Clark, doutor em História pela Universidade de Cambridge, em seu livro "Pensando com demônios - A ideia de bruxaria no princípio da Europa Moderna" (Edusp, 2006), conta que tanto o escritor Jean Savaron quanto Charles Noirot tentaram vincular a história e a etimologia do verbete "máscara" (significativo da diversão popular) com as da bruxaria. "Savaron acreditava que as palavras 'mommerie' e 'Mommon' tinham a mesma derivação, e que a mascarada era, portanto, inseparável da heresia: 'se o Diabo não se mascarar e se transformar no Anjo da Luz, se os falsos Profetas, Idólatras, hereges, hipócritas, feiticeiros, e seus outros seguidores não se fantasiassem e mascarassem com uma veste de inocência, não atrairiam tantas pessoas.' Savaron citou São Crisóstomo no sentido de que os que usavam máscaras estavam promulgando o sabá (la feste de Satan), e alegou ainda que a palavra 'máscara' era o mesmo que a palavra 'bruxa' nas línguas francesa, lombarda, toscana e inglesa. Noirot argumentou, no mesmo sentido, que a palavra latina para máscara (larva) sugeria a palavra latina para bruxa (lamia) e, portanto, que havia alguma conexão interna entre se fantasiar e demônios."

Como forma de oposição à Comédia Erudita, a Commedia dell'arte (uma forma de teatro popular improvisado) surgida durante o século XV na Itália procurou trabalhar as figuras míticas de Arlequim, Colombina e Pierrot, incluindo outros personagens durante as apresentações, que ocorriam sempre em praças públicas. "As companhias de Commedia dell’arte eram itinerantes e possuíam uma estrutura de esquema familiar. Seguiam apenas um roteiro, que se denominava 'canovaccio', mas possuindo total liberdade de criação; os personagens eram fixos, sendo que muitos atores viviam exclusivamente esses papéis até a sua morte." (2)


(Personagens tradicionais do teatro popular "Commedia dell'arte" -
1. Arlequim, 1671; 2. Brighella, 1570; 3. Colombina, 1683; 4. Dottore, 1653; 
5. Pagliaccio, 1600; 6. Pantalone, 1550 - Fonte: Wikipedia)


Já no Brasil, a introdução da festa do Carnaval ocorreu em meados do século XVI, por volta de 1641, trazida pelos portugueses durante a colonização brasileira. O Entrudo, como era conhecida a prática de brincadeiras e folguedos, era realizado inicialmente na cidade do Rio de Janeiro. Desde o início, a comemoração contava com a participação de famílias brancas, como também de escravos. Luiz Felipe Ferreira (professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e coordenador do Centro de Referência do Carnaval e líder do grupo de pesquisa Laboratório da Arte Carnavalesca) em seu livro "O livro de ouro do carnaval brasileiro" (Ediouro, 2004) esclarece que existiam, no Rio de Janeiro do início do século XIX, duas grandes categorias de Entrudo: O Entrudo Familiar e o Entrudo Popular. O Entrudo Familiar era realizado dentro das casas e, por isso mesmo, era mais "delicado". Geralmente, jogavam-se limões de cheiro em quem festejava (pequenas bolas de cera recheadas de águas perfumadas característica do carnaval da Rio de Janeiro). Já o Entrudo Popular, realizado nas ruas, era mais violento e grosseiro. Eram lançados quaisquer tipos de pós ou líquidos nos festejantes (inclusive urina e fezes). 


("Scène de Carnaval", comemoração do Entrudo Popular nas ruas brasileiras,
de Jean-Baptiste Debret, 1834 - clique para ampliar - Fonte: Internet)


Na tentativa de conter a violência no Entrudo Popular, por volta de 1834 foi incentivado o uso de máscaras durante a comemoração. De procedência francesa e confeccionadas em cera muito fina ou em papelão, as máscaras simulavam caras de animais e caretas. As fantasias apareceram logo após o surgimento das máscaras, dando mais vida, charme e colorido ao carnaval, tanto nos salões quanto nas ruas. Ao final do século XVIII, o Entrudo era praticado por todo o país, consistindo em brincadeiras e folguedos que variavam conforme os locais e os grupos sociais envolvidos. 

Por influência lusitana, uma diversão carnavalesca conhecida como Zé Pereira parece ter influenciado no surgimento da brincadeira no carnaval carioca, que teria se tornado tradicional no Brasil por volta do ano de 1846. "Há uma errônea, mas infelizmente consagrada versão, que atribui a 'invenção' do Zé-Pereira a um português de nome José Nogueira de Azevedo Paredes, comerciante estabelecido no Rio de Janeiro em meados do século XIX. Divulgada na maioria dos livros sobre carnaval, essa versão acabou ocultando toda uma série de influências que contribuíram para o surgimento dessa curiosa categoria carnavalesca. As raras referências sobre a tema na literatura carnavalesca são bastante desencontradas. Estas apontam o 'surgimento' do Zé Pereira em 1846 (Moraes, 1987), em 1852 (Edmundo, 1987) ou em 1846, 1848 e 1850 (Araújo, 2000)." (3)


(Zé Pereira no Carnaval de Iguape, sul do estado de São Paulo, 2009 - Fonte: Internet)


O pesquisador Nelson da Nóbrega Fernandes, em seu estudo "O Carnaval e a modernização do Rio de Janeiro" (Revista Geo-paisagem, 2003), apoia-se na teoria de que a introdução do Zé Pereira no Brasil teria ocorrido  quando "um português, sapateiro com oficina na rua São José, emigrado da cidade do Porto, numa segunda feira de carnaval, possivelmente ao se recordar com patrícios das peripécias cometidas em um antigo folguedo da terra, resolveu alugar alguns bombos e junto com eles sair à rua zabumbando-os. (...) Como se viu nos anos seguintes e por toda a segunda metade do século XIX, se formaram muitos Zé Pereiras pela cidade. Quanto ao seu nome, existem aqueles que lembram que em alguns lugares de Portugal o nome Zé Pereira era dado ao bombo, enquanto outros atribuem ao estado etílico dos companheiros de José Nogueira naquela segunda feira de carnaval, já que no auge da confusão seus amigos lhe davam vivas trocando seu nome por Zé Pereira. Na tentativa de situar o imediato sucesso do Zé Pereira e a favor da evidência de que tenha sido uma importação de um folguedo português, deve-se assinalar que a forte presença de imigrantes desta nacionalidade no Rio de Janeiro naturalmente impulsionou o início de sua trajetória. De qualquer modo, como escreveu Eneida (op. cit.: 47), 'natural de Portugal ou não, o Zé Pereira foi traduzido em brasileiro e tomou conta da cidade; virou cidadão carioca'. Em 1896, já vivendo um certo declínio, chegou a ser representado por uma companhia teatral como uma paródia da peça 'Les Pompiers de Nanterre', na qual o comediógrafo Francisco Correia Vasques, cantava: '“E viva o Zé Pereira, pois a ninguém faz mal...'" (4)

Ainda o Zé Pereira tenha sido indexado na cultura brasileira nos anos 1800, após a Independência do Brasil, em 1822, a elite carioca já decidia se afastar do passado lusitano, aproximando-se das novas potências capitalistas. A cidade e a cultura começavam a ser importados de Paris, sendo estabelecidos como os parâmetros para ditar a moda e os modos no Brasil. A marcha "Ó Abre Alas", composta pela compositora e pianista Chiquinha Gonzaga para o cordão Rosa de Ouro, do tradicional bairro do Andaraí (RJ) em 1889, tornou-se a primeira canção de Carnaval. Em 1939, Jaime Brito teria gravado a marcha de Chiquinha Gonzaga na gravadora Odeon, visando a divulgação durante o carnaval de 1940. (Clique aqui para ouvir a versão original).


(Entrudo na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, de Angelo Agostini, 1884 -
Fonte: Acervo particular de Gilberto Maringoni Oliveira)


O vídeo abaixo data de 1966 e traz Chico Buarque, Nara Leão e MPB-4 em um dos festivais musicais realizados pela TV Record, que consagraram a emissora durante os anos 1960/70. Na letra "Noite dos mascarados", Chico Buarque nos revela um cenário romântico das antigas comemorações do Carnaval europeu, em um clima de mistério propiciado pelo tradicional uso de máscaras. No trecho "- Eu sou tão menina... / - Meu tempo passou... / - Eu sou Colombina! / - Eu sou Pierrô!", Chico Buarque faz uso dos personagens Pierrot e Colombina (da Commedia dell'arte do Carnaval italiano), para retratar as personas   (personalidade) dos dois indivíduos que dialogam durante a música.




Noite dos mascarados
(Composição: Chico Buarque)

"- Quem é você?
- Adivinha, se gosta de mim!

Hoje os dois mascarados
Procuram os seus namorados
Perguntando assim:

- Quem é você, diga logo...
- Que eu quero saber o seu jogo...
- Que eu quero morrer no seu bloco...
- Que eu quero me arder no seu fogo.

- Eu sou seresteiro,
Poeta e cantor.
- O meu tempo inteiro
Só zombo do amor.
- Eu tenho um pandeiro.
- Só quero um violão.
- Eu nado em dinheiro.
- Não tenho um tostão.
Fui porta-estandarte,
Não sei mais dançar.
- Eu, modéstia à parte,
Nasci pra sambar.
- Eu sou tão menina...
- Meu tempo passou...
- Eu sou Colombina!
- Eu sou Pierrô!

Mas é Carnaval!
Não me diga mais quem é você!
Amanhã tudo volta ao normal.
Deixa a festa acabar,
Deixa o barco correr.

Deixa o dia raiar, que hoje eu sou
Da maneira que você me quer.
O que você pedir eu lhe dou,
Seja você quem for,
Seja o que Deus quiser!
Seja você quem for,
Seja o que Deus quiser!"


Corso carnavalesco, ou simplesmente Corso, é o nome que os passeios das sociedades carnavalescas do século XIX adquiriram no início do século XX, no Rio de Janeiro, após uma tentativa de se reproduzir no Brasil as "Batalhas de Flores" (ou "Batalhas de Confete"), que foram inspiradas nas "Batailles des Fleurs" do carnaval de Nice, na França. (Assista ao vídeo da "Batailles des Fleurs" no Carnaval de Nice, em 2010). A brincadeira do Corso consistia no desfile de carruagens enfeitadas (e, posteriormente, de automóveis sem capota) repletos de foliões que percorriam o eixo Avenida Central - Avenida Beira-Mar. Ao se cruzarem, os grupos fantasiados que ocupavam os veículos lançavam uns nos outros, confetes, serpentinas e esguichos de lança-perfume. (Dessa forma, o Corso era uma brincadeira exclusiva das elites, que possuíam veículos ou que podiam pagar seu aluguel durante o Carnaval).


(Corso carnavalesco realizado em 1928, em frente a Grande Fábrica de Refrescos,
de Ítalo Ferrari, em Ourinhos, São Paulo - Fonte: Autoclassic)


Segundo esclarece a jornalista e pesquisadora do Carnaval carioca Eneida de Moraes, em seu livro "História do Carnaval Carioca", a popularização dos automóveis teria afastado os foliões das classes alta e média e, nos anos 1940, o Corso acabaria desaparecendo de vez. Luiz Felipe Ferreira, em "O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro", sugere que o surgimento de bailes exclusivos para elite (como o famoso Baile do Municipal no Rio de Janeiro, após a organização do carnaval carioca em 1932, teve papel determinante na decadência do Corso).


("Batailles des Fleurs" do carnaval de Nice, França, 2010 - Fonte: Internet)


A tradição de se queimar o "temor do inverno" também foi adicionada à nossa cultura, trazida para a América Latina pelos portugueses e espanhóis. A Malhação de Judas (Iscariotes) durante o Sábado de Aleluia adquiriu diversas formas nos países católicos que mantiveram a celebração. Iniciada com intento religioso, com o decorrer dos anos a prática diversificou as personalidades a serem queimadas, conservando a simbologia. A variação da data do Carnaval no calendário se deve justamente à ligação direta com a Páscoa (no hemisfério sul, a celebração ocorre sempre no primeiro domingo após a primeira lua cheia do outono. Determinada a data do feriado cristão, basta retroceder 46 dias no calendário - 40 dias da Quaresma mais seis dias da Semana Santa - para se chegar à data da Quarta-Feira de Cinzas).


(Malhação de Judas com o boneco do então presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek,
realizada no Sábado de Aleluia, no bairro do Brás, em São Paulo -
Março de 1959 - Fonte: Arquivo UOL)



O Cortejo de Maracatu e a história do Brasil

Ainda que a cultura brasileira tenha integrado personagens carnavalescos oriundos da matriz européia (Pierrot, Arlequim, Colombina, Clóvis - corruptela de "clown", palhaço - Rei Momo e Rainha do Carnaval), todas essas entidades folclóricas, ao adentrarem outro universo cultural, tornaram-se parte de nosso processo de bricolagem cultural. Talvez o Cortejo de Maracatu seja o mais interessante tradutor do processo de construção da mitopoética brasileira. Dentro da esfera do folclore (folk: povo; lore: conhecimento; sendo assim, o conhecimento de um povo) o Cortejo trabalha pela memória do processo colonizatório europeu no Brasil, refletindo as antigas cortes africanas que, ao serem conquistadas e vendidas como escravas trouxeram suas raízes e mantiveram seus títulos de nobreza para o Brasil. 

A partir do século XVIII surgem no estado de Pernambuco os Maracatus de Baque Virado ou Maracatus de Nação Africana. (O Maracatu é um ritmo musical com dança típico da região pernambucana, que reúne uma interessante mistura de elementos culturais afro-brasileiros, indígenas e europeus. Acompanhado por uma banda com instrumentos de percussão - tambores, caixas, taróis e ganzás - e com forte característica religiosa, os dançarinos do Cortejo representam cada qual um personagem mítico). São eles:

1. Porta-estandarte, que leva o estandarte; este contém, basicamente, o nome da agremiação, uma figura que o represente e o ano que foi criada;
2. Dama do paço, mulher que leva em uma das mãos a Calunga (boneca de madeira, ricamente vestida e que simboliza uma entidade ou rainha já morta);
3. Rei e rainha, as figuras mais importantes do cortejo, e é por sua coroação que tudo é feito;
4. Vassalo, um escravo que leva o Palio (guarda-sol que protege os reis);
5. Figuras da corte: príncipes, ministros, embaixadores, e outras figuras da corte;
6. Damas da corte, senhoras ricas que não possuem título nobiliárquicos;
7. Yabás, mais conhecidas como baianas, que são escravas;
8. Batuqueiros, que animam o cortejo, tocando vários instrumentos, como caixas de guerra, alfaias (tambores), gonguê, xequerês e maracás.


(Algumas semelhanças de construção da cena dos rituais religiosos africanos e do Cortejo de Maracatu nordestino: 1. Orixás do Candomblé - Autor: Carybé - Fonte: Internet;
2. Cortejo de Maracatu em Olinda, Pernambuco - Fonte: Internet)


Um dos integrantes do Maracatu rural do Carnaval pernambucano é o Caboclo de Lança, conhecido também como lanceiro africano. Ele teria sido o "caboclo de guiada" (o guerreiro de Ogum, no Candomblé). 


(Acima, integrante de uma tribo do sul da Etiópia, na África Oriental - Foto: Hans Silvester;
abaixo, Caboclo de Lança, um dos personagens tradicionais do Maracatu rural no
Carnaval pernambucano - Foto: Silvinha Rangel)


O fotógrafo Hans Silvester, conhecido por seu livro "Natural Fashion – Tribal Decoration from Africa" (Editora Thames & Hudson, 2008) registrou algumas tribos africanas com as quais conviveu durante seis anos. É possível compreender como a estética do personagem folclórico brasileiro Caboclo de Lança foi sendo construída ao longo dos séculos, se observarmos a forte influência do universo cultural africano durante o processo de colonização do Brasil. Foram diversos grupos étnicos que forçosamente atravessaram o Atlântico, trazendo cada qual sua crença e estrutura identitária, participando ativamente do processo de construção da mitopoética brasileira. Segundo Lévi-Strauss, "a mitopoética se origina, (...) em uma espécie de noûs poiétikos, ou de imaginação transcendental. Logo, a mitopoética consiste na elaboração de um conjunto a partir de resíduos e fragmentos de acontecimentos, testemunhas fósseis da história de um indivíduo ou de uma sociedade; é uma espécie de bricolagem intelectual; e a bricolagem é o modus operandi da mitopoética."


(Caboclo de Lança do Carnaval pernambucano - Fonte: O Nordeste)


As imagens abaixo trazem vestimentas adornadas que são utilizadas em rituais sagrados em regiões da Angola e por povos de língua Iorubá (Nigéria, Benin, Togo, Serra Leoa e República Dominicana). Se compararmos com o Caboclo de Lança (foto acima), poderemos observar alguma similaridade estética entre as peças de referência, o que ratifica nosso sincretismo cultural.


(1. Traje de Egum, ou Egun, da mitologia Iorubá. O termo "Egum" é utilizado no Candomblé e significa "alma" ou espírito de qualquer pessoa falecida iniciada ou não - Fonte: Internet; 
2. Vestimentas de Babá Egum, adornados com miçangas, búzios e espelhos costurados aos tecidos - Fonte: Catálogo do Museu Afro Brasil, Parque do Ibirapuera, São Paulo;
3. Kaviungo ou Kavungo, entidade angolana responsável pela saúde. O Kavungo é intimamente ligado à morte e sua saudação é: "Tateto Mateba Sakula Oiza - Dixibe", que significa "O Pai da Ráfia Está Chegando - Silêncio" - Fonte: Internet)


Composta por Chico Buarque e Francis Hime em 1984, a letra de "Vai passar" foi um samba-enredo  de versos libertários que abordavam, de modo alegórico, o fim da Ditadura Militar no Brasil. Entretanto, os versos de "Vai passar" também podem ser interpretados através da memória do processo colonizatório europeu. O "carnaval" cantado por Chico nos remeteria a um tempo-espaço em que a população se liberta de todas as repressões assumindo, nas máscaras, a sua verdadeira identidade.





Vai passar
(Composição: Chico Buarque e Francis Hime)

"Vai passar nessa avenida um samba popular
Cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar
Ao lembrar que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais

Num tempo página infeliz da nossa história,
passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia a nossa pátria mãe tão distraída
sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações

Seus filhos erravam cegos pelo continente,
levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
E um dia, afinal, tinham o direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia que se chamava carnaval,
o carnaval, o carnaval

Vai passar, palmas pra ala dos barões famintos
O bloco dos napoleões retintos
e os pigmeus do boulevard
Meu Deus, vem olhar, vem ver de perto uma cidade a cantar
A evolução da liberdade até o dia clarear

Ai que vida boa, ô lerê,
ai que vida boa, ô lará
O estandarte do sanatório geral vai passar
Ai que vida boa, ô lerê,
ai que vida boa, ô lará
O estandarte do sanatório geral... vai passar"


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Fontes:
(1) ARAÚJO, Hiram da Costa. Carnaval: seis milênios de história, Gryphus, Rio de Janeiro, 2002.

(2) "Commedia dell'arte" (www.wikipedia.org/Commedia dell'arte)


(3) "Zé Pereira" (www.wikipedia.org/Ze_Pereira)

(4) FERNANDES, Nelson da Nóbrega. O Carnaval e a modernização do Rio de Janeiro. Revista Geo-paisagem. Ano 2, nº 4, 2003, ISSN Nº 1677-650 X)