Com o objetivo de ampliar a visão acerca da cultura brasileira e das influências culturais externas que ajudaram a construir o identitário nacional, a série (En)cantando o Brasil procura analisar nosso rico acervo musical. Através da pesquisa das referências presentes nas obras dos artistas brasileiros será possível ampliar nossa compreensão cultural à medida em que as composições revelam nossas influências mitológicas e folclóricas, socioculturais e religiosas ratificando nossa pluralidade cultural.
A letra escolhida para abrir esta série é "Perisséia", de Tom Zé e Capinan. A interpretação mais clara do neologismo presente no título da faixa 12 do álbum "Jogos de Armar" (2000) margeia algo como a Odisséia de Peri. Primogênito brasileiro, o habitante das matas e da literatura transpõe-se sobre as páginas de "O Guarani", de José de Alencar, para sobreviver nas regiões periféricas do Brasil. Podemos notar que a letra "Perisséia" traça um esboço poético acerca do contexto sociocultural brasileiro construído a partir do contato entre índios e o colonizador europeu. A presença de vocábulos estrangeiros e indígenas na letra de "Perisséia" traduzem-se como elementos formadores de um multifacetado panorama etnocultural.
(Capa do álbum "Jogos de Armar", de Tom Zé, 2000 - Fonte: Internet)
(Composição: Tom Zé e Capinan)
"Sabe com quem tá falando?
Eu sou amigo do rei...
Que importa o nome que eu tenho
Que importa aquilo que eu sou
Se eu tenho um sonho impossível
Pra mim o tempo parou
Meu nom, meu nome é Peri
Meu nom, meu nome é Zumbi
Meu nom, meu nome é Galdino
Meu nome é Brasil
Um gigante-menino
Um navio sem destino
No ano dois mil
Coro
Se eu pudesse atrasaria
Este relógio dois mil
Pra rezar na primeira missa
Pelo futuro do Brasil
Um gigante-menino
Um navio sem destino
No ano dois mil
Coro
Se eu pudesse atrasaria
Este relógio dois mil
Pra rezar na primeira missa
Pelo futuro do Brasil
Acalanto
Inhem inhem inhem
Inhem inhem inhem
Nhem... nhem nhem
Nhem nhem
Coro
Iê peri iê peri iê camará
Iê peri camará
Peri brasil
Peri
Peri brasil
Peri
E eu, o que sou?
E eu, o que sei?
Macunaíma, sou eu?
Tiradentes, sou eu?
Sou eu um poeta
Sou eu um pião?
Quantos anos eu tenho
Quantos anos terei?
Eu que vivo sem, jamais saberei
Ó meu pai, não me abandone,
Minha mãe, como é meu nome
Este mundo tem lei?
Este mundo tem rei?
Coro
Se eu pudesse atrasaria..."
A letra "Perisséia" confunde-se com a própria história do Brasil. Repleta de referências históricas, podemos interpretar que esta Odisséia de Peri (composta por Tom Zé e Capinan) vai se construindo do mesmo modo como se deu o contato cultural entre índios e europeus estabelecido no princípio da colonização. Relação historicamente marcada pela imposição cultural do europeu sobre os povos indígenas, tem-se em "Perisséia" um Brasil dual: de um lado rei e navios e, do outro, sonhos e Peris. A citação de cinco importantes ícones da história (o índio Peri, da Trilogia Indianista de José de Alencar; Zumbi dos Palmares, o escravo negro líder do Quilombo dos Palmares; o índio Galdino, líder indígena queimado vivo enquanto dormia em um ponto de ônibus em Brasília; o índio Macunaíma, da obra do modernista Mário de Andrade e Tiradentes, reconhecido como mártir de Inconfidência Mineira) remontam a diferentes momentos históricos do Brasil e constroem, assim, nosso mosaico sociocultural.
O primeiro trecho da composição são indagações em tom empolado: "Sabe com quem tá falando? / Eu sou amigo do rei... / Que importa o nome que eu tenho? / Que importa aquilo que eu sou?". (Percebe-se na introdução de "Perisséia" uma possível referência aos versos de Manuel Bandeira: "Vou-me embora pra Pasárgada / Lá sou amigo do rei / Lá tenho a mulher que eu quero / Na cama que escolherei."). As perguntas inicias de "Perisséia" aludem à relação entre as castas sociais brasileiras e ao modo como a elite burguesa e a plebe compreendem suas diferenças, não apenas econômicas como também étnicas. "A apologia do poder enfatizava as propriedades inatas do soberano com seu caráter paternal para com seu povo e sua procedência divina e sua capacidade divina de conceder graças. Porém a nobreza migrada, composta da mais alta nobreza de sangue e espada como os Caparicas, Lavradios, Pombais, Belas, Redondos e a nobreza de toga, mais recente e influente nos cargos da administração do reino, como os Anadia, Vagos, Angeja, Belmonte ou Cadaval, empenhou-se como pode para alargar as distâncias que as separavam das elites nativas criando uma tensão sócio cultural que marca a estada da corte no Brasil." (1)
(As damas ricas da Corte Portuguesa eram carregadas por escravos negros.
Tanto a vestimenta da Corte quanto da classe escrava eram inspiradas
pela moda francesa - Fonte: Internet)
Tanto a vestimenta da Corte quanto da classe escrava eram inspiradas
pela moda francesa - Fonte: Internet)
A influência cultural européia também é explicitada nos versos seguintes ("Meu nom, meu nome é Peri / Meu nom, meu nome é Zumbi"). Ao substituir o vocábulo "nome" para "nom" (sobrenome, em francês) percebe-se uma nítida referência à cultura francesa, que já exercia certo domínio na Corte Portuguesa na Europa. Incorporada à Família Real Portuguesa durante a colonização do Brasil, esta também tornou-se influente por aqui sob diversos aspectos, como na arte, arquitetura e na moda. "As famílias mais abastadas, cerca de 1/8 da população, mostraram-se entusiasmadas e privilegiadas em poder conviver na mesma cidade que abrigava a monarquia portuguesa. Os modelos trazidos e oferecidos pela realeza criaram novos valores culturais e ideológicos para elite carioca. Com a família real portuguesa, o Rio de Janeiro passou a ser palco de grandes e luxuosas festas. A moda parisiense foi acompanhada de perto e incorporada pelas famílias ricas da cidade – que desconsideravam o infortúnio inerente à disparidade climática." (2) Isso porque, apesar de beleza e suntuosidade, os trajes franceses eram incompatíveis com o clima tropical do Rio de Janeiro. Entretanto, isso era um mero detalhe para quem estava disposto a estabelecer uma nova identidade visual, travestindo-se do imaginário de glamour europeu.
(Anúncio de moda de 1910 - Coleção masculina importada da França pela loja
“La Ville de Paris", que ficava no número 45 da Rua Direita - Fonte: Estadão)
"Rei Brasil 500 anos", a peça teatral de Capinan (poeta baiano e parceiro de Tom Zé em "Perisséia") foi realizada em 2000. Sua história é utilizada como referência para os versos de "Perisséia": "...um gigante-menino / um navio sem destino / no ano dois mil" e "Se eu pudesse atrasaria / Este relógio dois mil / Pra rezar na primeira missa / Pelo futuro do Brasil." Criada em parceria com Fernando Cerqueira e Paulo Dourado, a ideia inicial de apresentação de "Rei Brasil 500 anos" teria sido uma missa. Porém, a convite da Universidade Federal de Música da Bahia (UFBA), a concepção evoluiu para um espetáculo popular multimídia, com a base em um libreto (feito pelo próprio Capinan), com composições de Cerqueira e encenação de Dourado.
"Rei Brazil 500 anos" é uma crítica as comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil. A história - uma ópera da odisséia tropical brasileira - se passa em um desfile de escola de samba narrando a viagem histórica de Pedro Álvares Cabral (desde o Tejo, em Lisboa, até o Monte Pascoal) e culminando na descoberta do Brasil, em abril de 1500. "Um menino de rua, Brasil, deseja participar do desfile, representando Peri, para fazer par romântico da ópera Il Guarani com Ceci. O garoto rouba o ponteiro do relógio 2000, que marca a contagem regressiva das comemorações do evento histórico, provocando uma viagem descontínua no tempo para diversos momentos da história brasileira e do mundo. Brasil, no entanto, encontra o passado e o deseja transformar, rezando e pedindo pelo futuro do País na Primeira Missa, celebrada na Coroa Vermelha: 'Se eu pudesse atrasaria / Este relógio dois mil / Pra rezar na primeira missa / Pelo futuro do Brasil.'" (3)
("Operários", de Tarsila do Amaral, 1931 - Fonte: Internet)
Sobre a colcha de retalhos cultural que forma o Brasil, Darcy Ribeiro em "O Povo Brasileiro" nos diz que "é bem provável que o brasileiro comece a surgir e a reconhecer-se a si próprio mais pela percepção de estranheza que provocava no lusitano, do que por sua identificação como membro das comunidades socioculturais novas, porventura também porque desejoso de remarcar sua diferença e superioridade frente aos indígenas. (...) talvez até se desgostasse da ideia de não ser europeu, por considerar, ele também, como subalterno tudo que era nativo ou negro. Mesmo o filho de pais brancos nascidos no Brasil, mazombo, ocupando em sua própria sociedade uma posição inferior com respeito aos que vinham da metrópole, se vexava muito da sua condição de filho da terra, recusando o tratamento de nativo e discriminando o brasilíndio mameluco ao considerá-lo como índio." (4) Os versos seguintes ("E eu, o que sou? / E eu, o que sei? / Macunaíma, sou eu? / Tiradentes, sou eu?/ Sou eu um poeta / Sou eu um pião?") refletem as incertezas étnicas, sociais e econômicas presentes permanentemente nos filhos descendentes da matriz européia. Brasileiros que somos, frutos de uma mistura racial secular nos tornamos inclassificáveis. O Brasil é e existe apenas na pluralidade.
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Fontes:
(1) "Colonização Portuguesa" (www.portalsaofrancisco.com.br)
(2) "Lei Estética" ( www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=939)
(3) "Capinan" (www.revista.agulha.nom.br/capinan.html)
(4) RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. Ed Companhia das Letras, São Paulo, 1995.
(1) "Colonização Portuguesa" (www.portalsaofrancisco.com.br)
(2) "Lei Estética" ( www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=939)
(3) "Capinan" (www.revista.agulha.nom.br/capinan.html)
(4) RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. Ed Companhia das Letras, São Paulo, 1995.
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