Série (En)cantando o Brasil (Caribenha Nação - Lenine)

A sétima faixa do álbum "Olho de Peixe" (1994), de Lenine em parceria com o percursionista Marcos Suzano entitula-se  "Caribenha Nação". A música, que foi composta por Lenine em parceria com Bráulio Tavares, nota-se um interessante jogo rítmico que nos sugere um movimento circular. Este batuque ritmado funciona como metáfora para a condição sincrética da cultura brasileira. Os elementos formadores deste verdadeiro balaio cultural se retroalimentaram e, através da miscigenação étnica e suas consequências socioculturais e políticas, geraram  um novo cenário (este, plural), de ideologias, crenças, costumes.


(Capa do álbum "Olho de Peixe", de Lenine, 1994 - Fonte: Internet)




Caribenha Nação
(Composição: Lenine e Bráulio Tavares)

"Lá
Onde o mar bebe o Capibaribe
Coroado leão
Caribenha nação
Longe do Caribe.

É a festa dos negros coroados
Num batuque que abala o firmamento;
É a sombra dos séculos guardados
É o rosto do girassol dos ventos.

É a chuva, o roncar de cachoeiras,
Na floresta onde o tempo toma impulso,
É a força que doma a terra inteira
As bandeiras de fogo do crepúsculo.

Quando o grego cruzou Gibraltar
Onde o negro também navegou,
Beduíno saiu de Dacar
E o Viking no mar se atirou.

Uma ilha no meio do mar
Era a rota do navegador,
Fortaleza, taberna e pomar,
Num país tuaregue e nagô.

É o brilho dos trilhos que suportam
O gemido de mil canaviais;
Estandarte em veludo e pedrarias
Batuqueiro, coração dos carnavais.

É o frevo, a jogar pernas e braços
No alarido de um povo a se inventar;
É o conjuro de ritos e mistérios
É um vulto ancestral de além-mar.

Quando o grego cruzou Gibraltar
Onde o negro também navegou,
Beduíno saiu de Dacar
E o Viking no mar se atirou.

Era o porto para quem procurava
O país onde o sol vai se pôr
E o seu povo no céu batizava
As estrelas ao sul do Equador"



(À esquerda, brasão do Reino de Leão; à direita, estandarte do Maracatu Leão Coroado, tradicional grupo de maracatu do estado de Pernambuco/PE - clique para ampliar -
Fonte: Wikipedia)


A letra de "Caribenha Nação" oferece cenários de alguns momentos da história do mundo e transforma o ouvinte em uma espécie de "viajante do tempo-espaço", inserindo-o em atmosferas históricas distintas, num curioso caleidoscópio cultural que nos revela as intersecções cósmicas da cultura humana. Isto é reforçado logo na primeira estrofe: "Lá / Onde o mar bebe o Capibaribe / Coroado leão / Caribenha nação / Longe do Caribe". São apresentados dois elementos simbólicos importantes: o Rio Capibaribe, localizado no estado de Pernambuco/PE (que foi um fator geográfico determinante na história de Pernambuco e do Nordeste brasileiro) e Coroado Leão, que não apenas reverencia o Maracatu Leão Coroado (folguedo de escravos trazidos para o Brasil e que é atualmente considerado um dos mais antigos grupos de maracatu de Pernambuco, identificado como nação nagô), como também faz referência histórica ao Reino de Leão (Castela e Leão), um dos antigos reinos ibéricos surgidos no período da reconquista cristã, cuja insígnia apresenta um leão coroado. 



(Iluminura medieval do livro "L'histoire naturelle", datada do século XV -
clique para ampliar - Fonte: Revista História Viva #35)


Há ainda, na primeira estrofe de "Caribenha Nação", a citação do Caribe como elemento (indireto)  constitutivo de nossa cultura. Cristóvão Colombo havia navegado no mar caribenho (Antilhas) ao tentar encontrar uma rota marítima para a Índia. Após o descobrimento das Antilhas, a área foi rapidamente colonizada pela civilização ocidental e convertida em um local comum para as rotas comerciais européias. Um dos textos mais conhecidos no fim da Idade Média foi um relato de uma viagem do cavaleiro inglês Jean de Mandeville ao Oriente. Não se sabe ao certo se o autor realmente havia saído da Europa. Segundo Xavier Hélary, mestre em história medieval da Universidade Paris-Sorbonne e especialista em história militar da Idade Média, em seu artigo publicado na revista História Viva #35 (Dezembro, 2011), "a narrativa de Jean de Mandeville é apenas um apanhado de invenções caluniosas que fazem referência a povos fabulosos: os cinocéfalos, homens com cabeça de cachorro que latem em vez de falar; homens sem cabeça cujo rosto aparece no peito; pessoas que se alimentam do cheiro das frutas... entre muitos outros" e afirma: "Jean de Mandeville não foi o inventor desses seres monstruosos. Se seus relatos tiveram tamanho sucesso, foi justamente porque confirmavam crenças sólidas do Ocidente sobre o Extremo Oriente, e em particular sobre a Índia, terra de todas as maravilhas."

Podemos perceber também a alusão ao movimento circular propiciado pela configuração geográfica dos elementos: Capibaribe (Brasil), Coroado Leão (Europa), Caribe (América Central) e, por análise  histórica, Índia (Oriente), sugerindo um mundo cujas informações se retroalimentam e que, induzido pelo uso da aliteração na letra reforça essa sensação. Juan Eduardo Cirlot, poeta e mitologista catalão, nos diz que "o caráter cíclico dos fenômenos, com o encurvamento da etapa final dos processos, tendendo a reunir-se com a etapa inicial permite sua simbolização por meio de figuras como o círculo, a espiral e a elipse. Em sua condição de ciclo, todos os processos coincidem (integrando movimento no espaço, transcorrer no tempo, modificações de forma ou condição), quer se trate do ano, do mês, da semana, ou de uma vida humana, da vida de uma cultura ou de uma raça." (1)


(1. Inicial de Ezequiel, página da Bíblia de Winchester, circa 1160-1170;
2. Máscara bellacoola representando o sol, costa noroeste da Índia;
3. Mandala de Vishnu, 1420; 4. Árvore da morte e da vida, do missal do Arcebispo de Salzburgo, 1481; 5. Manta de pele de búfalo, índios das planícies; 6. Líder da Mandan Buffalo Bull Society, Karl Bodmer, 1834)


As imagens acima ratificam o uso constante do círculo como elemento presente na história, estabelecendo-se como símbolo primário da cultura humana. "A definição de círculo é de uma superfície plana limitada por uma linha curva, a circunferência, cujos pontos são equidistantes de um ponto fixo central. Por analogia, se parece com uma roda ou disco. Assim como o ponto, o círculo é usado como símbolo da perfeição, da homogeneidade, ausência de divisão, da totalidade e da eternidade, representando assim o tempo, como o alfa e o ômega." (2) Reforçando a descrição do círculo, principalmente sob seu aspecto de totalidade no tempo e no espaço, encontramos em Campbell: "O círculo, por outro lado, representa a totalidade. Tudo dentro do círculo é uma coisa só, circundada e limitada. Esse seria o aspecto espacial. Mas o aspecto  temporal do círculo é que você parte, vai a algum lugar e sempre retorna. Deus é o alfa e o ômega, o princípio e o fim. O círculo sugere imediatamente uma totalidade completa, quer no tempo, quer no espaço." (3)

Já na segunda estrofe, "É a festa dos negros coroados / Num batuque que abala o firmamento / É a sombra dos séculos guardados / É o rosto do girassol dos ventos", temos referências a festas populares brasileiras oriundas da matriz Européia ("...festa dos negros coroados") que, com a abolição da escravatura, acabaram perdendo suas influências ("...é a sombra dos séculos guardados / é o rosto do girassol dos ventos").

A "festa dos negros coroados" talvez queira aludir às Congadas. É importante salientar que uma das poucas formas de preservação das raízes culturais africanas era o agrupamento de membros de mesma nação na África, que permitiam o auxílio mútuo. Assim, os minas, rebolos, cabindas, gêges, quiloas e outros povos africanos constituíam irmandades entre si para melhor resistir à crueldade da escravidão. Por desconhecimento, o termo "congo" passou a ser empregado pelos portugueses para designar todos os agrupamentos. Da mesma forma que não reconheciam os santos católicos que ornavam seus templos (usando as imagens para camuflar o culto dos Orixás), os escravos também não reconheciam o poder constituído de reis, vice-reis, governadores, o que ocasionava a eleição de seus próprios reis, a quem obedeciam e a quem dedicavam seus esforços para comprar a alforria. 


(Festa de Nossa Senhora do Rosário - Congada - em Jaguaraçu, Minas Gerais, 2011 - 
clique para ampliar - Foto: Jorge Quintão - Imaginário Coletivo)


(Festa de Nossa Senhora do Rosário - Congada - em Jaguaraçu, Minas Gerais, 2011 - 
clique para ampliar - Foto: Jorge Quintão - Imaginário Coletivo)


As cerimônias de coroação aconteciam nas festas de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário (no Ciclo do Natal, quando os escravos tinham os dias livres para realizar suas festividades). Como soberano de uma nação, o rei coroado recebia os cumprimentos de membros de outras nações africanas da cidade, conhecidas como Embaixadas. Um dos personagens mais conhecidos é Chico Rei, presente na tradição oral de Minas Gerais. Segundo esta tradição, Chico era o rei de uma tribo no Congo, trazido como escravo para o Brasil, que conseguiu comprar sua alforria (e de outros conterrâneos) com seu trabalho, tornando-se "rei" em Ouro Preto/MG. Esta história, porém, não possui registros históricos fidedignos. Ela aparece em uma nota de rodapé escrita pelo historiador e político Diogo de Vasconcelos, em seu livro "História Antiga de Minas", de 1904.


(Negro do Reino do Congo, litografia de Johann Moritz Rugendas, 1830 - Fonte: Wikipedia)


Na imagem abaixo, do pintor francês Jean Baptiste Debret (um dos mais notáveis artistas-viajantes, considerado pela autora Valéria Lima ("Uma viagem com Debret", Jorge Zahar, 2004), como "o mais requisitado e competente, naquilo que pretendia revelar por meio da arte". (4) A arte de Debret revela Rei, Rainha e outros membros das hierarquias de uma uma irmandade do Rosário em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Todos estão vestidos solenemente e fazem coleta para a manutenção da igreja. À esquerda, músicos executam alguma peça para a ocasião. Situada no extremo sul do Brasil, Porto Alegre era uma cidade financeiramente precária durante os anos de 1800.


("Coleta para a manutenção da igreja de Nossa Senhora do Rosário em Porto Alegre",
de Jean Baptiste Debret, 1828 - clique para ampliar - Fonte: Internet)


Após a abolição da escravatura em 13 de maio de 1888 e a Proclamação da República, em 1889, já não havia tantos soberanos africanos a serem homenageados e as condições de vida haviam evoluído, comparativamente aos séculos anteriores. A tradição de homenagear as irmandades negras, entretanto, manteve-se intacta. Durante muito tempo os cortejos foram realizados no Carnaval e este hábito, então, se firmou. As antigas nações se transformaram em cucumbis, cordões, depois em ranchos, blocos e escolas de samba e mantiveram muito das antigas tradições do Brasil colonial, dentre elas, as Embaixadas, visitas que as nações (hoje blocos carnavalescos e escolas de samba) fazem entre si nas ocasiões solenes ou festivais.

A ideologia de um negro ser coroado rei foi propagada nos séculos seguintes pelo movimento Rastafari, criado pelo jamaicano Marcus Mosiah Garvey, em meados dos anos 1920. (O rastafarianismo, também conhecido como movimento rastafári ou Rastafar-I é um movimento religioso que proclama Hailê Selassiê I, imperador da Etiópia, como a representação terrena de Jah, Deus). Este termo advém de uma forma contraída de Jeová, na versão da Bíblia do Rei James. O termo rastafári tem sua origem em Ras, "príncipe" ou "cabeça"; Tafari, "da paz" Makonnen - o nome de Hailê Selassiê antes de sua coroação.

O movimento surgiu na Jamaica entre a classe trabalhadora e camponeses negros, iniciado por uma interpretação da profecia bíblica (em parte baseada pelo status de Selassiê como o único monarca africano de um país totalmente independente e seus títulos de Rei dos Reis, Senhor dos Senhores e Leão Conquistador da Tribo de Judah, que foram dados pela Igreja Ortodoxa Etíope). Karen Farrington conta que Garvey "iniciou a Associação Universal de Melhoramento para o Negro, numa tentativa de encorajar companheiros jamaicanos a voltar para sua terra natal africana, da qual eles foram tirados contra  sua vontade como escravos, séculos atrás. Os jamaicanos eram pobres e oprimidos. A noção de um lar onde pudessem encontrar paz e dignidade era, é natural, atraente. Garvey até profetizou que um rei negro seria coroado na África e receberia os negros de volta ao lar." (5)


(Bandeira oficial da Etiópia, com a insígnia do Leão de Judá - Fonte: Internet)


O jamaicano Bob Marley, um dos músicos mais famosos por popularizar o reggae, era conhecido como "Charles Wesley dos rastafáris", pelo modo com o qual divulgava a religião em suas músicas. A letra de "Iron Lion Zion" (ouça a música aqui), por exemplo, trata basicamente das crenças rastafáris. Zion seria a "terra prometida" que, na letra, refere-se à Etiópia. O leão faz alusão ao Leão de Judá, presente na bandeira oficial etíope, e representa Hailê Selassiê.

Ao longo da história humana, o sol foi objeto de veneração em diversas culturas. Vemos que este elemento é destacado na letra: "é o rosto do girassol dos ventos". O girassol é uma planta cuja origem remonta à América do Sul e era cultivada pelos povos indígenas para alimentação. O girassol, como o próprio nome já nos diz, acompanha a trajetória do sol, do nascente ao poente. Durante o século XIV, o conquistador e explorador espanhol Francisco Pizarro encontrou diversos objetos incas e imagens moldadas em ouro que fazem referência aos girassóis como seu deus do sol. A moeda do Peru, o sol novo, foi assim chamada em homenagem ao sol, bem como seus antecessores, como o Inti (que significa "Deus solar da civilização", em quechua, da civilização inca). Na mitologia grega, tinha-se que Hélios era o deus sol (posteriormente associado a Apolo). Além disto, "sol" também é o nome moderno da estrela em vários idiomas além do português, tais como espanhol, catalão e galego. Em persa, "sol" significa "ano solar".


(1. Disco de Echenique que representa Inti, o deus Sol peruano;
2. Ilustração de Rá, o deus Sol egípcio, viajando pelo céu durante o dia e atravessando o submundo da noite,  que data de 1200 a.C.; 3. Disco de prata dedicado ao Sol Invictus, o deus Sol romano - Fontes: Internet)


Em 1543, Nicolau Copérnico publicou a obra "A revolução das esferas celestes", na qual sustentava a teoria de que a Terra e outros planetas se moviam ao redor do sol. Este livro tinha como prefácio um "Elogio ao Sol", característico do neoplatonismo do século XVI. Seu modelo centrado no Sol havia criado a base para os êxitos de Kepler e de Galileu Galilei, para a ciência moderna e astronomia. Os signos zodiacais têm origem nas doze constelações do zodiaco visiveis na eclíptica (órbita da Terra ao redor do sol, conhecida também como Via Solis, ou, Caminho do Sol). Há 2 mil anos, o cientista grego Ptolomeu organizou o conhecimento recolhido à tradição astrológica dos povos com quem os gregos mantiveram contato. O equinócio vernal (a primavera do hemisfério norte) era assinalado pelo ingresso do sol na constelação de Áries. Como este fato marcava o retorno da vegetação e do calor após os meses de inverno (o momento em que se iniciava um novo ciclo), Áries foi considerado o primeiro signo zodiacal e as constelações seguintes passaram a nomear os signos em seqüência.


(O homem e a influência zodiacal, de Kalender de Guy Marchant - Além da crença da influência das constelações estrelares nos acontecimentos da Terra, acreditava-se também que as constelações afetavam as partes do corpo humano - Fonte: Internet)


Nicholas Mann, em seu livro "Grandes civilizações do passado" (Folio, 2006) comenta que "os astrólogos do final do século XV e do século XVI em geral acreditaram que o mundo era um globo situado no coração de um universo esférico (até na Idade Média pouca gente culta acreditava que o mundo fosse plano). Ao redor da Terra giravam sete esferas cristalinas sobre as quais descansavam os planetas e as estrelas, produzindo música celestial enquanto giravam. Os signos do zodíaco uniram as estrelas e as constelações em doze imagens separadas e seis deusas ou "decanos" (...) Estudando o movimento dos céus e averiguando que influências deviam ser esperadas, o astrólogo podia prever o futuro" e completa: "Durante o século XVI e início do século XVIII, os eruditos aprenderam gradualmente a rejeitar o modelo do universo herdado de Ptolomeu e do mundo antigo, segundo o qual a Terra estava situada no centro. Em primeiro lugar, necessitavam de um esquema exato para medir o movimento das estrelas a fim de estabelecer a data correta para as festas móveis da Igreja como, por exemplo, a Semana Santa. A noção de que o universo gorava em torno da Terra tinha levado a imprecisões no calendário da Igreja, e a necessidade de corrigir estas deficiências conduziu a uma observação mais sistemática dos movimentos celestes. Em segundo lugar, os astrólogos estavam convencidos de que o Sol estava situado metafisicamente no coração do sistema planetário e de que exercia a principal influência sobre a Terra."


(Tabela VIII de "De Sphaera estense", um manuscrito de astrologia datado do século XV. O Leão, signo do zodíaco mais estreitamente associado ao Sol, está entre as pernas da figura. O efeito das influências celestes do Sol sobre a natureza humana é representado na parte inferior da ilustração - Fonte: Internet)


A palavra horóscopo (oroskopos) é de origem grega. É constituída através da junção da palavra “ora” (tempo, temporada) com “skopeo” (observo). Pode-se dizer, então, que o horóscopo é a leitura astrológica do céu. Os doze signos zodiacais são classificados a partir da Teoria dos quatro elementos. Pertencem ao elemento Fogo os signos de: Áries, Leão, Sagitário; os signos do elemento Terra são: Touro, Virgem, Capricórnio; já os signos que compõem o elemento Ar são: Gêmeos, Libra, Aquário e, finalmente, o elemento Água reúne os signos de: Câncer, Escorpião, Peixes.


(Panorama em 360º ​​graus da eclíptica mostrando as ilustrações tradicionais das constelações zodiacais sobrepostas em um mosaico fotográfico do céu noturno, do astrônomo polonês Hevelius - Fonte: Wikipedia)


A imagem abaixo, uma das mais antigas da humanidade, refere-se a cruz do Zodíaco. Representa o trajeto do sol através das 12 maiores constelações no decorrer de um ano. Representa, também, os 12 meses do ano, as 4 estações, solistícios e equinócios. O termo Zodíaco está relacionado com o fato de as constelações serem antropomorfismos, ou seja, serem representações personificadas, com referências a pessoas ou animais. As primeiras civilizações não apenas seguiam o sol e as estrelas, como também as personificavam através de mitos, que envolviam os seus movimentos e relações. O sol foi personificado à semelhança de um "Deus Todo-poderoso", por seu poder criador e salvador da humanidade. 


(Cruz do Zodíaco - Fonte: Internet)


Na estrofe seguinte ("É a chuva, o roncar de cachoeiras / Na floresta onde o tempo toma impulso / É a força que doma a terra inteira / As bandeiras de fogo do crepúsculo") vemos os quatro elementos - respectivamente água, terra, ar e fogo - presentes na letra como elementos que compõem as esferas temporais, em uma possível alusão a astrologia e alquimia. No mundo ocidental, a Teoria dos quatro elementos surgiu na Grécia, entre os filósofos pré-socráticos. "Platão, Aristóteles e a maioria dos autores clássicos estavam convencidos de que existia uma relação entre o movimento dos céus e os acontecimentos na Terra, de que o macrocosmo do Universo influi no microcosmo da vida diária." (6) A Teoria dos quatro elementos advém da Teoria dos cinco elementos, do Taoísmo chinês (madeira, fogo, terra, metal água). 
Cornelius Agrippa, intelectual influente durante o Renascimento, tentou conciliar as diversas doutrinas ocultas e unir a filosofia à cabala. Em 1533 publicou o primeiro livro, "De occulta philosophia" ("A Filosofia Oculta"), considerado uma verdadeira enciclopédia sobre magia. No primeiro volume (Magia Natural), Cornelius desenvolve a teoria dos três mundos: o elementar, o intelectual e o celeste; cada um sendo governado pelo seu superior e recebendo as suas influências. Analisa as virtudes ocultas das coisas, o modo como elas provêm das idéias, da alma, do cosmos e dos influxos planetários. No segundo volume (Números, pesos e medidas), ele aborda os segredos da harmonia universal e dos signos. Já o terceiro e último volume, Agrippa trata o efeito dos nomes divinos, da hierarquia angélica, dos espíritos planetários, das nove classes de espíritos maus, dos ritos, conjurações, pontículos sagrados, dos hieróglifos cabalísticos. É dele a frase: "Embora o homem não seja um ser imortal como o é o Universo, ele não deixa de ser dotado de razão e com sua inteligência, sua imaginação e a sua alma, é capaz de influenciar e transformar o mundo inteiro". O seu tratado constitui uma síntese dos ensinamentos de Moisés, de Cristo, de Orfeu, de Demócrito de Abdera, de Pitágoras e de Plotino.


(Ilustração do sistema de engenho de açúcar - Ilustração: Autor desconhecido -
clique para ampliar - Fonte: Internet)


A alusão ao sol estende-se na estrofe seguinte: "É o brilho dos trilhos que suportam / O gemido de mil canaviais". Aqui vemos um cenário histórico brasileiro, que faz referência à escravidão e ao engenho colonial. Originária de Papua Nova Guiné (uma ilha do Oceano Pacífico), a cana-de-açúcar já era conhecida há cerca de 12 mil anos. Cultivada na Ásia Meridional, ela foi trazida pelos árabes da África para a Sicília e, desta, para a costa sul da Espanha. O plantio da cana-de-açúcar (matéria-prima das usinas no Brasil) durante o período colonial se iniciou em São Vicente, no ano de 1522, trazida da Ilha da Madeira pelo militar português Martim Afonso de Souza. No nordeste brasileiro, as condições para o plantio da cana-de-açúcar eram ideais: as terras úmidas em massapê (solo siltoso-argiloso, escuro e rico em húmus) de Pernambuco permitiram que o estado se tornasse uma potência da Colônia portuguesa.

O engenho, a grande propriedade produtora de açúcar, era constituído basicamente por dois grandes setores: o agrícola - formado pelos canaviais - e o de beneficiamento - a casa-do-engenho, onde a cana-de-açúcar era transformada em açúcar e aguardente. A parte das terras do engenho destinada ao cultivo da cana era dividida em partidos, explorados ou não pelo proprietário. As terras não exploradas pelo senhor do engenho eram cedidas aos lavradores, que eram então obrigados a moer sua cana no engenho do proprietário, entregando-lhe a metade de sua produção, além de pagar o aluguel da terra usada, o equivalente a cerca de 10% da produção. Nas fazendas de açúcar ou nas minas de ouro (a partir do século XVIII), os escravos recebiam uma alimentação de péssima qualidade e trabalhavam de sol a sol, vestidos com trapos de roupa. A fim de evitar fugas eram acorrentados durante a noite em suas moradias, as senzalas. Os escravos dormiam no chão duro de terra batida ou sobre palha. 

Gil de Methódio Maranhão, presidente do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP) entre os anos de 1947 e 1948 idealizou o Museu do Açúcar. Criado nos anos 1960, tinha o objetivo de organizar todos os elementos (sociais, artísticos e técnicos) representativos da agroindústria açucareira no Brasil. O Museu inaugurou sua sede própria em 1963, com a abertura da exposição "O Açúcar e o Homem". O edifício, localizado no bairro de Casa Forte, em Pernambuco, possui dois pavimentos e abriga hoje o Museu do Homem do Nordeste, da Fundação Joaquim Nabuco.

"Por mais de trezentos anos a maior parte da riqueza produzida, consumida no Brasil ou exportada foi fruto da exploração do trabalho escravo. As mãos escravas extraíram ouro e diamantes das minas, plantaram e colheram cana, café, cacau, algodão e outros produtos tropicais de exportação. Os escravos também trabalhavam na agricultura de subsistência, na criação de gado, na produção de charque, nos ofícios manuais e nos serviços domésticos. Nas cidades, eram eles que se encarregavam do transporte de objetos e pessoas e constituíam a mão-de-obra mais numerosa empregada na construção de casas, pontes, fábricas, estradas e diversos serviços urbanos. Eram também os responsáveis pela distribuição de alimentos, como vendedores ambulantes e quitandeiras que povoaram as ruas das grandes e pequenas cidades brasileiras. Por isso, o número de cativos foi sempre representativo no conjunto da população brasileira, sobretudo nas regiões que exportavam gêneros tropicais." (7)


(Jornal "A Provínicia de São Paulo", de 4 de Janeiro de 1875 - Destaque para anúncio da fuga de escravos da Fazenda da Fortalesa, Paraibuna, interior de São Paulo - Fonte: Arquivo pessoal)


Devido ao modo com o qual os escravos eram tratados era comum o anúncio de suas fugas nos jornais regionais, que ofereciam recompensa em troca de suas apreensões. No Jornal "A Província de São Paulo", de 1875 (imagem acima) vemos uma denúncia destas recorrentes fugas: "Fugirão da fazenda de Fortalesa, e pertencentes a Joaquim Antonio Garcia, da Parahybuna, os seguintes escravos: - Jeronymo, preto, creoulo, estatura mais que regular, reforçado de corpo, rosto comprido, desdentado na frente, bem barbado, tem n'um dos pés a cicatriz d'um grande golpe de machado, falla grossa e pausada: lavra e serra madeira, e é dado a embriaguez. - João, mulato cabra, alto, delgado, olhos grandes, barbado no queixo, falla fina e pausada, pés compridos e voltados para fóra, muito deligente e activo. O primeiro d'estes escravos fugio em Agosto, e o segundo em Outubro do corrente anno. Quem apprehendel-os e puzer seguros em qualquer cadêa da provincia, será satisfatoriamente remunerado, e indemnisado das despesas que fizer. (Parahybuna, 26 de Dezembro de 1874)."


(Vestuário do período Barroco, que compreende meados do século XVII até o final do século XVIII. A moda barroca se distingue pelas formas largas, ornamentação elaborada e a utilização de cores escuras, brocado de seda e rendas - Fonte: Texsite.info)


Durante o Carnaval era dada permissão aos escravos para vivenciar em público suas tradições e religião. Então, em 1898 foi fundado, no Engenho do Cumbe, em Nazaré da Mata (Pernambuco), o Maracatu rural (conhecido como Cambinda Brasileira). O Maracatu, cuja origem advém das Congadas (citada acima), caracteriza-se principalmente pela percussão forte em ritmo frenético. Segundo o site oficial de Nazaré da Mata/PE, o Maracatu rural "deriva das nações do Rei do Congo e do Alto do Congo. A instituição Rei do Congo, criada na segunda metade do século 17, tinha por finalidade executar a parte administrativa e a representação do ato dos congos, teatro, música e dança. Os escravos coroavam seus reis e rainhas às portas da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em Recife. Chefes tribais africanos trazidos para o Brasil reproduziam gestos da nobreza europeia para mostrar a sua força e seu poder, apesar da escravidão. Viajantes do século XVIII já narravam os desfiles destas cortes e as coroações de soberanos do Congo e de Angola no pátio da Igreja do Rosário dos Pretos, no Recife. A palavra maracatu era usada, até o século XIX, para designar qualquer ajuntamento de negros. Pouco a pouco passou a ser empregada para os cortejos de Reis Africanos."

Virginia Barbosa, da Fundação Joaquim Nabuco, completa: "O ritual que antecede a apresentação do caboclo de lança, quer no interior quer na cidade, envolve cerimônias que acontecem em terreiros, como a benção das lanças e da flor que carregam na boca, a consagração da Calunga (boneca representando a divindade, levada pela baiana), e a abstinência sexual dos homens, que começa alguns dias antes do carnaval. Bonald Neto (1991, p. 284) transcreve informações retiradas da entrevista realizada por Evandro Rabello com o caboclo de lança, Severino Ramos da Silva, de Goiana, que explica: '(...) os caboclos saem protegidos tanto pela 'guiada' (a longa lança de madeira) (...) como pelo 'calço' espiritual (...). É o ritual da purificação (...) que apóia o caboclo disposto a sair num Carnaval. (...). Por isso, antes de sair já na 6ª feira, começa a abstinência que faz o Caboclo, até a 4ª feira de Cinzas, não mais procurar mulher, nem tomar banho 'para não abrir o corpo', obrigando-o a dormir mesmo sujo como veio da rua. Na hora que vão sair no primeiro dia todos vão para a 'mesa'. O Mestre faz um preparo que se bebe com uma flor dentro do copo e mais três pingos de vela santa. Aí então o Mestre autoriza a saída do caboclo. Muitos saem com um cravo branco ou rosa na boca ou no chapéu para 'defesa', para fechar o corpo (...). (...) a 'rua' é sempre o exterior perigoso e repleto de riscos ocultos. Quem anda pelo “meio da rua” precisa estar 'preparado' e protegido de todo o mal. Por isso os caboclos tomam o 'azougue' (violento coquetel de pólvora, azeite e aguardente), preparado pelo Mestre. (...) Ao voltarem, na quarta-feira, vão logo à Igreja tomar Cinzas e 'se despedirem' de alguma coisa errada feita no Carnaval.


(Caboclos de Lança, do tradicional Maracatu rural,
em Nazaré da Mata/PE - Fonte: Internet)


Os escravos se vestiam com as roupas barrocas que eram descartadas pelos senhores e passavam a reinterpretar o Império português, aliando à celebração as suas referências culturais oriundas da África, sua terra natal. Assim, a "corte" era formada por: Rei e RainhaPríncipe e PrincesaDuque e Duquesa, Barão e Baronesa, além de outros títulos reais. Além desses personagens havia também o Porta-estandarte, o Porta-sombrinha, os Batuqueiros (referência que encontramos no trecho "(...) Batuqueiro, coração dos carnavais"), Damas da Corte, Dama do Paço e Calunga. (Leia mais aqui).


(Os Estandartes e suas identificações - 1. Estandarte Estrela Brilhante, fundado em 1824;
2. Estandarte Maracatu Estrela do Norte, fundado em 2002;
3. Estandarte de Ur, artefato sumério encontrado ao sul de Bagdá - Fonte: Internet)


Em "(...) Estandarte em veludo e pedrarias" temos a citação do estandarte como "guia" que introduz e identifica os diversos grupos de escravos que festejavam o Maracatu. Segundo o "Dicionário de Arte-sacra e técnicas afro-brasileiras" (Pallas, 2003) do antropólogo Raul Lodyestandarte signifca uma "peça basicamente em tecido, organizada em estrutura de madeira ou metal, geralmente exibindo bordados em materiais diversos e aplicações de flores de papel, medalhas, fitinhas, entre tantas outras coisas. (...) O estandarte identifica o grupo, não apenas pela legenda com o nome da agremiação, mas principalmente pelas cores e imagens - alguns claramente de origem totêmica e outras mais próximas de cópias de marcas (brasões) de instituições oficiais -, sendo um objeto-síntese da história, e identidade do grupo. Tudo isso faz com que o estandarte seja uma peça, muitas vezes sagrada, como ocorre com alguns grupos de maracatu de baque-virado ou de nação."


(20º Encontro Estadual dos Maracatus de Baque Solto, realizado no Carnaval de 2010 -
Foto: Passarinho/Prefeitura de Olinda/PE)


Os versos da próxima estrofe ("É o frevo, a jogar pernas e braços") abordam o Frevo, outra manifestação cultural nordestina. A palavra frevo seria uma corruptela de ferver (frever), que passou a designar efervescência, agitação, rebuliço. O Frevo exemplifica nossa pluralidade cultural, uma vez que o passo (dança que se realiza ao ritmo do Frevo) nasceu a partir das influências da Capoeira. O verso seguinte ("No alarido de um povo a se inventar") reforça a condição sincrética da cultura brasileira, que reúne elementos de diversas etnias, suas crenças e valores, recodificando-os: "É o conjuro de ritos e mistérios / É um vulto ancestral de além-mar". A simbologia das sombrinhas coloridas também está relacionada à luta, resistência e camuflagem, uma vez que serviam como armas de defesa dos passistas contra os grupos rivais. (De início era utilizado o guarda-chuva comum, geralmente velho e esfarrapado que, atualmente, é estilizado: pequeno, para facilitar a dança; e colorido, para embelezar a coreografia). O Frevo possui mais de 120 passos catalogados, sendo a dobradiça, a tesoura, a locomotiva, o ferrolho e o parafuso os mais conhecidos. Com o passar do tempo, o Frevo foi absorvendo novos elementos rítmicos; nos anos 1930 surgiram o Frevo-de-Rua, Frevo-Canção e o Frevo-de-Bloco


(Passistas de Frevo em Pernambuco - Foto: Internet)


O refrão de "Caribenha Nação" apresenta a "exploração marítima" como elemento-chave para a construção de novas unidades e transformações identitárias: "Quando o grego cruzou Gibraltar / Onde o negro também navegou / Beduíno saiu de Dacar / E o Viking no mar se atirou" e "Uma ilha no meio do mar / Era a rota do navegador / Fortaleza, taberna e pomar / Num país tuaregue e nagô". Temos em "grego" (pomar), "beduíno" (Oriente/fortaleza) e "viking" (nórdicos/taberna) uma trilogia étnica. 

Câmara Cascudo nos diz que "o mistério atordoante da orientação reduz-se à conexão harmônica de três elementos funcionais: memória topográfica, o sentido egocentrista e o domocentrista. O egocentrismo baseia-se na noção instintiva e natural que o indivíduo tenha dos pontos cardeais. (...) Devemos lembrar que nortear-se é encontrar o norte e o rumo mais antigo do mundo seria acompanhar o curso solar. (...) O domocentrismo é a consciência obstinada que o homem possui do seu ponto de partida, coincidindo com a vila de residência, aldeia natal, acampamento doméstico." (8)


(Mapa do mundo, de Willem Blaeau, 1641. O desenvolvimento da exploração, a representação e a tipografia durante o Renascimento iriam exercer uma influência decisiva no modo como os europeus modernos observam o mundo. Apesar da distorção dos pólos pelo cartógrafo Gerhardus Mercartor foi convertido no modo padronizado de representar o mundo redondo sobre uma superfície plana - clique para ampliar - Fonte: Grandes Civilizações do Passado, Nicholas Mann, Folio, 2006)


O trecho "Quando o grego cruzou Gibraltar" evoca a mitologia grega. Atlas (conhecido também como Atlante) teria sido um dos titãs gregos condenado por Zeus a sustentar os céus para sempre e é retratado com um globo sobre seus ombros. Casado com Pleione teve sete filhas, as Plêiades. Segundo uma das versões existentes, Atlas teria se tornado um guardião dos Pilares de Hércules, sobre os quais os céus foram colocados (e que também eram a passagem para o lar oceânico de Atlântida - o Estreito de Gibraltar). Seu nome passou então a significar "portador" ou "sofredor". É possível encontrarmos referências a Atlas na geografia (o Oceano além do Mediterrâneo homenageia o titã, ao qual denominamos Atlântico), na cartografia (Atlas é o coletivo de mapas, a coleção de cartas que representam o planeta Terra) e também na medicina (Atlas é a primeira vértebra da coluna cervical - uma clara referência ao local onde sustentava o gigantesco peso a que fora condenado suportar).


(Atlas carregando os céus - a esfera celestial - nos ombros, presente na fachada no Palácio Linderhof, 2008 - Foto: Gustavo Trapp)


Já o povo beduíno (do árabe "badawín", ou seja, que vive no deserto) citado na letra ("Beduíno saiu de Dacar") é nômade, assim como os tuaregs (do árabe, abandonados pelos deuses). Originários da Península Arábica, durante o século VII os beduínos expandiram-se pelo norte da África. Com suas caravanas, praticavam o comércio de vários produtos pelas cidades da região. Na Arábia, onde sempre viveram os grupos principais, as difíceis condições de vida no deserto geraram conflitos pelo uso de poços de água e pastagens, o que levou os grupos beduínos a eventuais ataques a caravanas e outras formas de extorsão contra vizinhos e forasteiros. Capital e maior cidade do Senegal, na península do Cabo Verde, Dacar foi o maior centro para o tráfico de escravos para toda América entre os séculos XVI e XIX. O governo senegalês restaurou e transformou em museu o forte de Estrées, na ilha de Gorée, onde os escravos eram reunidos para serem enviados em navios negreiros. Nicholas Mann nos diz que "no início do século XV, os portugueses foram para Oriente por mar, o que implicou uma tenaz exploração da costa oeste da África: Fernando Gomes em 1469-1475, Bartolomeu Dias em 1487-1488, Vasco da Gama em 1497-1499 e Pedro Álvares Cabral em 1500. (...) A primeira viagem de circunavegação da Terra (1519-1521) aconteceu nessa época, e foi Fernão de Magalhães, um português a serviço da Espanha, que uniu o Oriente e o Ocidente."


(Forte d'Estrées, na ilha de Goréia: atual Museu Histórico do Senegal, 2006 - Foto: Ji-Elle)


"Nagô" refere-se a um termo étnico (assim como os jejes, angolas, congos e fulas). Nagô é nome dado a todos os negros da Costa dos Escravos que falavam o Iorubá. Os franceses colonizadores do Daomé (reino africano, atual Benin) chamavam os iorubanos de nagôs, que chegaram, em maior quantidade, na cidade de Salvador e tiveram muita influência na formação social e religiosa dos mestiços baianos. O candomblé, os babalaôs, os babas, as filhas de santo, os instrumentos musicais (tambores, agogôs, arguês, adjás), a culinária (vatapá, acarajé, abará), Exu, Ogum, Oxumaré, Oxóssi, chegaram ao Brasil por intermédio dos nagôs.


(Mapa do mundo dentro da cabeça de um idiota, circa 1590. Este é um exemplo do gosto pela cartografia combinada com o engenho e imaginação. É importante salientar que idiota provém do grego (idiótes) e significa "o homem privado" (em oposição ao homem de Estado, ou público). É um desenho preciso e a tecnologia da impressão ajudou os europeus a recordar e a entender o mundo que começaram a explorar durante o Renascimento - clique para ampliar - Fonte: Grandes Civilizações do Passado, Nicholas Mann, Folio, 2006)


A partir desta análise histórica podemos compreender que tanto os Tuaregs quanto os Nagôs, portanto, seriam componentes formadores do brasileiro ("Num país tuaregue e nagô"). Mesmo estes dois povos, por conta da exploração marítima ao longo dos séculos, já viriam carregados de influências culturais oriundas de outros períodos históricos, implicando na reinvenção dos saberes. "As raças antigas, os núcleos étnicos primários, irredutíveis em suas permanentes morfológicas, tendem a constituir-se minoria, ao passo que as secundárias, metamórficas, produtos miscigênicos, ampliam-se incessantemente. São, evidentemente, essas raças metamórficas as colonizadoras, povoadoras, sustentações das culturas, dominadoras da geografia física, senhoras do mundo." (9) O Brasil, desse modo, "Era o porto para quem procurava / O país onde o sol vai se pôr". É possível observar uma referência ao movimento cíclico (dia/sol; noite/estrela). 

A citação de "sol", neste trecho ("O país onde o sol vai se pôr") também pode aludir à imposição religiosa européia sobre o deus sol do povo indígena (Tupã), que passou a ser orientado segundo os preceitos católicos. Darcy Ribeiro, em "O Povo Brasileiro"  (Companhia das Letras, 1996) assinala o objetivo dos jesuítas (participantes das missões salvacionistas) sobre os indígenas : "(...) exercer, a ferro e fogo, se preciso, para incorporar as novas gentes ao rebanho do rei e da Igreja. Esse era um mandato imperativo no plano espiritual. Uma destinação expressa, uma missão a cargo da Coroa, cujo direito de avassalar os índios, colonizar e fluir as riquezas da terra nova decorria do sagrado dever de salvá-los pela evangelização" e continua "a tarefa que os missionários se propunham era (...) recriar aqui o humano, desenvolvendo suas melhores potencialidades, para implantar, afinal, uma sociedade solidária, igualitária, orante e pia, nas bases sonhadas pelos profetas." 


(Bandeiras do Brasil em períodos distintos; acima, litografia de Debret, 1768; abaixo, a bandeira oficial do Brasil - Fonte: Wikipedia)


A investigação do céu sempre constituiu um importante elo entre o céu e a terra, entre o homem e Deus. "As estrelas ao sul do Equador" reverenciam a constelação de Cruzeiro do Sul, uma das mais conhecidas pelos habitantes ao sul da linha do Equador. Essa constelação é representada em diversas bandeiras nacionais, como a do Brasil, da Austrália, Nova Zelândia e Papua Nova Guiné. Ela também está presente no centro do brasão de armas do Brasil. Aqui vemos o formato circular exercendo novamente sua função simbólica, ao observarmos que a constelação de Cruzeiro do Sul é inserida dentro do círculo azul, que representa o céuCrux, como também é conhecida, foi revelada ao Ocidente no início do século XVII, pelo navegador e explorador português Pedro Fernandes de QueirósAntes do desenvolvimento da bússola, os navegantes usavam os astros principalmente como referências para rumos. Notou-se que a Estrela Polar (Draconis) permanecia próxima de um ponto no céu ao Norte; era esta a referência aos navegantes. Quando a Estrela Polar não estava visível, estes usavam outras estrelas, como o Sol ou a Lua. 


(Observador utilizado a placa "Al-Kemal" - Fonte: Internet)


Os primeiros astrônomos faziam uso ou de seus pontos de vista ou de alguma ferramenta rudimentar a fim de calcular a posição das estrelas. No Oriente, Vasco da Gama, na viagem de descoberta do caminho marítimo para as Índias, encontrou na mão dos povos asiáticos um instrumento rudimentar para medida de altura dos astros, a placa "Al-Kemal" (ou “Kamal”), a que denominou Tábua da Índia. O instrumento era uma pequena placa retangular, normalmente feita de chifre, com um cordão fixado ao centro, tendo uma série de nós que indicavam determinados locais, cujas latitudes haviam sido previamente determinadas. Para o uso da placa "Al-Kemal"  (“linha guia”, em árabe), o observador elevava o instrumento, com o lado maior na vertical, na direção da Estrela Polar, e o movia, afastando ou aproximando do seu olho, até que sua altura ocupasse exatamente o espaço entre ela (Estrela) e o horizonte. Então, com a outra mão, distendia o cordão preso ao seu centro e verificava qual o nó próximo ao seu nariz. Como cada nó correspondia um determinado local, o navegante descobria que estava, ao largo, na Latitude de um lugar conhecido.

Compreendemos, assim, que "Caribenha Nação" traça uma análise sobre o conjunto de influências culturais formadores da nação brasileira (expansão marítima) tomando por base a premissa de que a humanidade seria fruto de outra expansão, cósmica. Tal qual a existência de bilhões de anos dos átomos formadores de nosso corpo (sintetizados e recombinados extraordinariamente de maneira a constituírem a vida), assim também ocorreu com o nascimento da cultura brasileira que, ao longo dos séculos, tratou de recombinar elementos científicos, culturais, folclóricos e religiosidades distintas originando, assim, um complexo e irreverente "corpo-nação".


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Fontes:
(1) CIRLOT LAPORTA, Juan Eduardo. Dicionário de símbolos, Editora Moraes, 1984.

(2) CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números, Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1982.

(3) CASCUDO, Luís da Câmara. Civilização e Cultura, Editora Global, São Paulo, 2004. 


(4) LIMA, Valéria. Uma viagem com Debret, Editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2004.

(5) FARRINGTON, Karen. História ilustrada da religião, Editora Manole, São Paulo, 1999.


(6) MANN, Nicholas. Grandes civilizações do passado, Folio, 2006.


(7) ALBUQUERQUE, Wlamyra; FRAGA FILHO, Walter. Uma história do negro no Brasil, Fundação Cultural dos Palmares, Salvador, 2006.

(8) CASCUDO, Luís da Câmara. Civilização e Cultura, Editora Global, São Paulo, 2004.

(9) SILVA MELLO, Antonio. A superioridade do homem tropical, Rio de Janeiro, 1965.

A origem do Carnaval

Através da celebração das grandes colheitas, alguns povos da Antiguidade (como hebreus, egípcios, gregos e romanos) já celebravam o Carnaval, louvando suas divindades pela fertilidade do solo. Já se acreditou que a etimologia da palavra "carnaval" remontasse a "carrum navalis" (carro naval). Essa origem, porém, já foi contestada, e  atualmente a versão mais aceita é a que liga "carnaval" a "carne vale" (ou seja, "adeus à carne").


("A juventude de Baco", de William Adolphe Bouguereau, 1884 - Fonte: Wikipedia)


Hiram Araújo, autor do livro "Carnaval: seis milênios de história" (Gryphus, 2002) comenta que o Carnaval celebrado na Antiguidade era uma celebração na qual eram "marcados pela licença sexual e pela inversão dos papéis entre servos e senhores, como também pela escolha de um escravo real que era sacrificado no final da celebração." Na Grécia Antiga, por exemplo, eram realizadas as famosas Festas Dionísicas, celebrações em homenagem a Dionísio. (Seu equivalente romano é Baco, o deus do vinho, sendo a ele atribuído os excessos sexuais). Além da festa ao deus Baco, celebrava-se também a Saturnália, onde os principais valores sociais da época eram invertidos e todo o tipo de prática era realizada sem entraves sociais e tabus chegando até ao sacrifício humano. A comemoração durava cerca de três dias e todo o tipo de atividade escolar e comercial era encerrada. Já na Idade Média, as Bachanalias (deriva daí o termo "bacanal") e Saturnalias eram realizadas uma vez ao ano. Neste período, em que a Igreja começava cada vez mais a exercer seu papel social e político, essas celebrações de origem pagã ganharam conotação negativa dentro dos parâmetros religiosos. Algumas intervenções por parte da Igreja foram realizadas, como tentativa de reduzir a prática das festas, consideradas abomináveis pelo Catolicismo.


("The Mardi Gras March & Two-Step", capa de um livro de partituras, publicada em 1897
por E.T. Paull Music Co, Nova Iorque - Fonte: Internet)


Em 590 d.C. o papa Gregório I instituiu a festa do Carnaval no calendário eclesiástico. Suportado com certa tolerância pela Igreja (no século XV, o papa Paulo II foi uma das figuras religiosas mais tolerantes à prática do Carnaval, permitindo que se realizassem comemorações na Via Ápia, rua próxima ao seu palácio), o Carnaval tornou-se uma das poucas festas que mantiveram suas origens pagãs após indexação católica, restringindo-se aos dias que antecedem o início da Quaresma. (Em contraste com a Quaresma, tempo de penitência e privação, os três dias do Carnaval são chamados "gordos" - em especial a terça-feira, conhecida como terça-feira gorda; em francês, Mardi Gras). "Quando o cristianismo chegou, já encontrou as festas, ditas orgiásticas, em uso nos povos. Por seus caracteres libertinos e pecaminosos, foram a principio condenadas pela Igreja Católica. Teólogos, doutores e papas da Igreja, como São Clemente de Alexandria (escritor e doutor da Igreja - 150-213 d.C), Tertuliano (teólogo romano, Cartago -155-216 d.C, grande pensador polemista dos primeiros séculos da Igreja, combateu tenazmente o relaxamento dos costumes); São Cipriano (Bispo e mártir; padre da Igreja latina, Cartago, iniciado no século III. Foi decapitado por ocasião das perseguições de Valério); Inocêncio II (Papa, Roma - 1130-1140), entre outros, foram contra o carnaval." (1)

Em um artigo para a revista História Viva #35 (Dezembro, 2011) o romancista francês Édouard Brasey conta que na noite de 1º de janeiro de 1091, Walchelin, um jovem clérigo que servia na igreja de Bonneval, França, teria testemunhado um imenso exército, reconhecendo pessoas recentemente falecidas que não haviam tido tempo de se arrepender de por seus crimes. Segundo ele, a tropa era negra e cuspia fogo. Walchelin teria então interpretado que essa horda apavorante de almas seria a famosa lenda da tropa Hellequin. Walchelin teria assistido "ao desfile de cortesãs da cavalaria, colocadas sobre celas cheias de pregos incandescentes. Esses pregos em brasa feriam-lhes as nádegas e, horrivelmente atormentadas por essas picadas e esses ferimentos, elas gritavam: 'Ai de mim!' 'Ai de mim!', e confessavam diante de todos os pecados pelos quais sofriam tais castigos." Brasey ainda afirma que "o grupo liderado por Hellequin, na pena do monge cristão, não seria portanto senão uma 'caçada ao diabo', no qual os pecadores impenitentes eram arrastados depois de sua morte para expiar seus crimes." Como forma de aumentar o número fiéis através de conversões em massa ao catolicismo, "o espetáculo servia de advertência aos vivos que não se arrependessem a tempo", completa. 


(À esquerda, Arlecchino, ou Arlequim, um personagem do teatro popular italiano inspirado na lenda de uma tropa de pecadores. À direita, o personagem do romance gráfico "V de Vendetta", de Alan Moore, em um fragmento do longa-metragem - Fonte: Revista História Viva #35 - clique para ampliar)


A máscara de Arlequim (um dos adornos tradicionais da festa carnavalesca da cidade de Veneza, na Itália) e a máscara do personagem de codinome "V" (do romance gráfico "V de Vendetta" - "V de Vingança", de   Alan Moore) possuem aspectos convergentes. Apesar da obra de Moore conceber "V" dentro de um universo ficcional com forte influência na Conspiração da Pólvora (o longa dirigido por McTeigue traz, inclusive, a rima tradicional em alusão a Contra-reforma: "Remember, remember, the 5th of November" - "Lembrai, lembrai, o cinco de novembro"), também é possível estabelecermos algum paralelo entre "V" e a tropa Hellequin, na medida em que as duas narrativas têm a liberdade como principal temática. Temos em "V" um misterioso anarquista com intenções de destruir o Estado através de ações diretas. Já o ideal libertário de Hellequin, segundo o medievalista Jean-Claude Schmitt, em seu estudo "Les revenants, les vivants et les morts dans la société médievale" ("Os que retornam, os vivos e os mortos na sociedade medieval") estaria presente em sua etimologia: "não resta dúvida de que o nome Hellequin (ou Herlequin ou Helething), que aparece primeiro na Normandia e depois na Inglaterra, seja de origem germânica e faça referência ao exército (heer) e à assembléia dos homens livres (thing)."


(Foliões durante o Carnaval vestindo formas primitivas das máscaras larva, chapéus e véus, de Giacomo Franco, 1610 - clique para ampliar - Fonte: Museu Britânico)


Brasey ainda estabelece uma interessante relação entre o Carnaval e a cavalgada das almas danadas narrada pelo jovem padre: "Walchelin a situa na noite de 1º de Janeiro. Mas o fenômeno sobrenatural evoca também os rituais folclóricos medievais ligados ao carnaval, nos quais as pessoas queimam simbolicamente os temores do inverno, enquanto se entregam a excessos, desafiando as regras sociais e religiosas antes de iniciar o austero período de Quaresma." Dessa forma, talvez Walchelin tivesse testemunhado o ritual carnavalesco medieval, uma vez que o uso de máscaras durante essa data festiva data de aproximadamente 30.000 anos a.C. As máscaras eram ornamentadas para ser usadas em celebrações, cultos e rituais de povos primitivos. Durante a Antiguidade, por exemplo, os egípcios acreditavam que a colocação de uma máscara na face dos mortos ajudava na passagem para a vida eterna. Um tratado datado de 22 de Fevereiro de 1339, proibia os mascarados de vaguearem pela noite nas ruas da cidade. Seu uso, contudo, era permitido durante todo o Carnaval, exceto nas festas religiosas. Durante todas as manifestações importantes, como as festas republicanas, era consentido o uso dos trajes venezianos, que compunham o uso das máscaras.


(Máscaras e fantasias tradicionais do Carnaval de Veneza, Itália - Fonte: Internet)


Stuart Clark, doutor em História pela Universidade de Cambridge, em seu livro "Pensando com demônios - A ideia de bruxaria no princípio da Europa Moderna" (Edusp, 2006), conta que tanto o escritor Jean Savaron quanto Charles Noirot tentaram vincular a história e a etimologia do verbete "máscara" (significativo da diversão popular) com as da bruxaria. "Savaron acreditava que as palavras 'mommerie' e 'Mommon' tinham a mesma derivação, e que a mascarada era, portanto, inseparável da heresia: 'se o Diabo não se mascarar e se transformar no Anjo da Luz, se os falsos Profetas, Idólatras, hereges, hipócritas, feiticeiros, e seus outros seguidores não se fantasiassem e mascarassem com uma veste de inocência, não atrairiam tantas pessoas.' Savaron citou São Crisóstomo no sentido de que os que usavam máscaras estavam promulgando o sabá (la feste de Satan), e alegou ainda que a palavra 'máscara' era o mesmo que a palavra 'bruxa' nas línguas francesa, lombarda, toscana e inglesa. Noirot argumentou, no mesmo sentido, que a palavra latina para máscara (larva) sugeria a palavra latina para bruxa (lamia) e, portanto, que havia alguma conexão interna entre se fantasiar e demônios."

Como forma de oposição à Comédia Erudita, a Commedia dell'arte (uma forma de teatro popular improvisado) surgida durante o século XV na Itália procurou trabalhar as figuras míticas de Arlequim, Colombina e Pierrot, incluindo outros personagens durante as apresentações, que ocorriam sempre em praças públicas. "As companhias de Commedia dell’arte eram itinerantes e possuíam uma estrutura de esquema familiar. Seguiam apenas um roteiro, que se denominava 'canovaccio', mas possuindo total liberdade de criação; os personagens eram fixos, sendo que muitos atores viviam exclusivamente esses papéis até a sua morte." (2)


(Personagens tradicionais do teatro popular "Commedia dell'arte" -
1. Arlequim, 1671; 2. Brighella, 1570; 3. Colombina, 1683; 4. Dottore, 1653; 
5. Pagliaccio, 1600; 6. Pantalone, 1550 - Fonte: Wikipedia)


Já no Brasil, a introdução da festa do Carnaval ocorreu em meados do século XVI, por volta de 1641, trazida pelos portugueses durante a colonização brasileira. O Entrudo, como era conhecida a prática de brincadeiras e folguedos, era realizado inicialmente na cidade do Rio de Janeiro. Desde o início, a comemoração contava com a participação de famílias brancas, como também de escravos. Luiz Felipe Ferreira (professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e coordenador do Centro de Referência do Carnaval e líder do grupo de pesquisa Laboratório da Arte Carnavalesca) em seu livro "O livro de ouro do carnaval brasileiro" (Ediouro, 2004) esclarece que existiam, no Rio de Janeiro do início do século XIX, duas grandes categorias de Entrudo: O Entrudo Familiar e o Entrudo Popular. O Entrudo Familiar era realizado dentro das casas e, por isso mesmo, era mais "delicado". Geralmente, jogavam-se limões de cheiro em quem festejava (pequenas bolas de cera recheadas de águas perfumadas característica do carnaval da Rio de Janeiro). Já o Entrudo Popular, realizado nas ruas, era mais violento e grosseiro. Eram lançados quaisquer tipos de pós ou líquidos nos festejantes (inclusive urina e fezes). 


("Scène de Carnaval", comemoração do Entrudo Popular nas ruas brasileiras,
de Jean-Baptiste Debret, 1834 - clique para ampliar - Fonte: Internet)


Na tentativa de conter a violência no Entrudo Popular, por volta de 1834 foi incentivado o uso de máscaras durante a comemoração. De procedência francesa e confeccionadas em cera muito fina ou em papelão, as máscaras simulavam caras de animais e caretas. As fantasias apareceram logo após o surgimento das máscaras, dando mais vida, charme e colorido ao carnaval, tanto nos salões quanto nas ruas. Ao final do século XVIII, o Entrudo era praticado por todo o país, consistindo em brincadeiras e folguedos que variavam conforme os locais e os grupos sociais envolvidos. 

Por influência lusitana, uma diversão carnavalesca conhecida como Zé Pereira parece ter influenciado no surgimento da brincadeira no carnaval carioca, que teria se tornado tradicional no Brasil por volta do ano de 1846. "Há uma errônea, mas infelizmente consagrada versão, que atribui a 'invenção' do Zé-Pereira a um português de nome José Nogueira de Azevedo Paredes, comerciante estabelecido no Rio de Janeiro em meados do século XIX. Divulgada na maioria dos livros sobre carnaval, essa versão acabou ocultando toda uma série de influências que contribuíram para o surgimento dessa curiosa categoria carnavalesca. As raras referências sobre a tema na literatura carnavalesca são bastante desencontradas. Estas apontam o 'surgimento' do Zé Pereira em 1846 (Moraes, 1987), em 1852 (Edmundo, 1987) ou em 1846, 1848 e 1850 (Araújo, 2000)." (3)


(Zé Pereira no Carnaval de Iguape, sul do estado de São Paulo, 2009 - Fonte: Internet)


O pesquisador Nelson da Nóbrega Fernandes, em seu estudo "O Carnaval e a modernização do Rio de Janeiro" (Revista Geo-paisagem, 2003), apoia-se na teoria de que a introdução do Zé Pereira no Brasil teria ocorrido  quando "um português, sapateiro com oficina na rua São José, emigrado da cidade do Porto, numa segunda feira de carnaval, possivelmente ao se recordar com patrícios das peripécias cometidas em um antigo folguedo da terra, resolveu alugar alguns bombos e junto com eles sair à rua zabumbando-os. (...) Como se viu nos anos seguintes e por toda a segunda metade do século XIX, se formaram muitos Zé Pereiras pela cidade. Quanto ao seu nome, existem aqueles que lembram que em alguns lugares de Portugal o nome Zé Pereira era dado ao bombo, enquanto outros atribuem ao estado etílico dos companheiros de José Nogueira naquela segunda feira de carnaval, já que no auge da confusão seus amigos lhe davam vivas trocando seu nome por Zé Pereira. Na tentativa de situar o imediato sucesso do Zé Pereira e a favor da evidência de que tenha sido uma importação de um folguedo português, deve-se assinalar que a forte presença de imigrantes desta nacionalidade no Rio de Janeiro naturalmente impulsionou o início de sua trajetória. De qualquer modo, como escreveu Eneida (op. cit.: 47), 'natural de Portugal ou não, o Zé Pereira foi traduzido em brasileiro e tomou conta da cidade; virou cidadão carioca'. Em 1896, já vivendo um certo declínio, chegou a ser representado por uma companhia teatral como uma paródia da peça 'Les Pompiers de Nanterre', na qual o comediógrafo Francisco Correia Vasques, cantava: '“E viva o Zé Pereira, pois a ninguém faz mal...'" (4)

Ainda o Zé Pereira tenha sido indexado na cultura brasileira nos anos 1800, após a Independência do Brasil, em 1822, a elite carioca já decidia se afastar do passado lusitano, aproximando-se das novas potências capitalistas. A cidade e a cultura começavam a ser importados de Paris, sendo estabelecidos como os parâmetros para ditar a moda e os modos no Brasil. A marcha "Ó Abre Alas", composta pela compositora e pianista Chiquinha Gonzaga para o cordão Rosa de Ouro, do tradicional bairro do Andaraí (RJ) em 1889, tornou-se a primeira canção de Carnaval. Em 1939, Jaime Brito teria gravado a marcha de Chiquinha Gonzaga na gravadora Odeon, visando a divulgação durante o carnaval de 1940. (Clique aqui para ouvir a versão original).


(Entrudo na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, de Angelo Agostini, 1884 -
Fonte: Acervo particular de Gilberto Maringoni Oliveira)


O vídeo abaixo data de 1966 e traz Chico Buarque, Nara Leão e MPB-4 em um dos festivais musicais realizados pela TV Record, que consagraram a emissora durante os anos 1960/70. Na letra "Noite dos mascarados", Chico Buarque nos revela um cenário romântico das antigas comemorações do Carnaval europeu, em um clima de mistério propiciado pelo tradicional uso de máscaras. No trecho "- Eu sou tão menina... / - Meu tempo passou... / - Eu sou Colombina! / - Eu sou Pierrô!", Chico Buarque faz uso dos personagens Pierrot e Colombina (da Commedia dell'arte do Carnaval italiano), para retratar as personas   (personalidade) dos dois indivíduos que dialogam durante a música.




Noite dos mascarados
(Composição: Chico Buarque)

"- Quem é você?
- Adivinha, se gosta de mim!

Hoje os dois mascarados
Procuram os seus namorados
Perguntando assim:

- Quem é você, diga logo...
- Que eu quero saber o seu jogo...
- Que eu quero morrer no seu bloco...
- Que eu quero me arder no seu fogo.

- Eu sou seresteiro,
Poeta e cantor.
- O meu tempo inteiro
Só zombo do amor.
- Eu tenho um pandeiro.
- Só quero um violão.
- Eu nado em dinheiro.
- Não tenho um tostão.
Fui porta-estandarte,
Não sei mais dançar.
- Eu, modéstia à parte,
Nasci pra sambar.
- Eu sou tão menina...
- Meu tempo passou...
- Eu sou Colombina!
- Eu sou Pierrô!

Mas é Carnaval!
Não me diga mais quem é você!
Amanhã tudo volta ao normal.
Deixa a festa acabar,
Deixa o barco correr.

Deixa o dia raiar, que hoje eu sou
Da maneira que você me quer.
O que você pedir eu lhe dou,
Seja você quem for,
Seja o que Deus quiser!
Seja você quem for,
Seja o que Deus quiser!"


Corso carnavalesco, ou simplesmente Corso, é o nome que os passeios das sociedades carnavalescas do século XIX adquiriram no início do século XX, no Rio de Janeiro, após uma tentativa de se reproduzir no Brasil as "Batalhas de Flores" (ou "Batalhas de Confete"), que foram inspiradas nas "Batailles des Fleurs" do carnaval de Nice, na França. (Assista ao vídeo da "Batailles des Fleurs" no Carnaval de Nice, em 2010). A brincadeira do Corso consistia no desfile de carruagens enfeitadas (e, posteriormente, de automóveis sem capota) repletos de foliões que percorriam o eixo Avenida Central - Avenida Beira-Mar. Ao se cruzarem, os grupos fantasiados que ocupavam os veículos lançavam uns nos outros, confetes, serpentinas e esguichos de lança-perfume. (Dessa forma, o Corso era uma brincadeira exclusiva das elites, que possuíam veículos ou que podiam pagar seu aluguel durante o Carnaval).


(Corso carnavalesco realizado em 1928, em frente a Grande Fábrica de Refrescos,
de Ítalo Ferrari, em Ourinhos, São Paulo - Fonte: Autoclassic)


Segundo esclarece a jornalista e pesquisadora do Carnaval carioca Eneida de Moraes, em seu livro "História do Carnaval Carioca", a popularização dos automóveis teria afastado os foliões das classes alta e média e, nos anos 1940, o Corso acabaria desaparecendo de vez. Luiz Felipe Ferreira, em "O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro", sugere que o surgimento de bailes exclusivos para elite (como o famoso Baile do Municipal no Rio de Janeiro, após a organização do carnaval carioca em 1932, teve papel determinante na decadência do Corso).


("Batailles des Fleurs" do carnaval de Nice, França, 2010 - Fonte: Internet)


A tradição de se queimar o "temor do inverno" também foi adicionada à nossa cultura, trazida para a América Latina pelos portugueses e espanhóis. A Malhação de Judas (Iscariotes) durante o Sábado de Aleluia adquiriu diversas formas nos países católicos que mantiveram a celebração. Iniciada com intento religioso, com o decorrer dos anos a prática diversificou as personalidades a serem queimadas, conservando a simbologia. A variação da data do Carnaval no calendário se deve justamente à ligação direta com a Páscoa (no hemisfério sul, a celebração ocorre sempre no primeiro domingo após a primeira lua cheia do outono. Determinada a data do feriado cristão, basta retroceder 46 dias no calendário - 40 dias da Quaresma mais seis dias da Semana Santa - para se chegar à data da Quarta-Feira de Cinzas).


(Malhação de Judas com o boneco do então presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek,
realizada no Sábado de Aleluia, no bairro do Brás, em São Paulo -
Março de 1959 - Fonte: Arquivo UOL)



O Cortejo de Maracatu e a história do Brasil

Ainda que a cultura brasileira tenha integrado personagens carnavalescos oriundos da matriz européia (Pierrot, Arlequim, Colombina, Clóvis - corruptela de "clown", palhaço - Rei Momo e Rainha do Carnaval), todas essas entidades folclóricas, ao adentrarem outro universo cultural, tornaram-se parte de nosso processo de bricolagem cultural. Talvez o Cortejo de Maracatu seja o mais interessante tradutor do processo de construção da mitopoética brasileira. Dentro da esfera do folclore (folk: povo; lore: conhecimento; sendo assim, o conhecimento de um povo) o Cortejo trabalha pela memória do processo colonizatório europeu no Brasil, refletindo as antigas cortes africanas que, ao serem conquistadas e vendidas como escravas trouxeram suas raízes e mantiveram seus títulos de nobreza para o Brasil. 

A partir do século XVIII surgem no estado de Pernambuco os Maracatus de Baque Virado ou Maracatus de Nação Africana. (O Maracatu é um ritmo musical com dança típico da região pernambucana, que reúne uma interessante mistura de elementos culturais afro-brasileiros, indígenas e europeus. Acompanhado por uma banda com instrumentos de percussão - tambores, caixas, taróis e ganzás - e com forte característica religiosa, os dançarinos do Cortejo representam cada qual um personagem mítico). São eles:

1. Porta-estandarte, que leva o estandarte; este contém, basicamente, o nome da agremiação, uma figura que o represente e o ano que foi criada;
2. Dama do paço, mulher que leva em uma das mãos a Calunga (boneca de madeira, ricamente vestida e que simboliza uma entidade ou rainha já morta);
3. Rei e rainha, as figuras mais importantes do cortejo, e é por sua coroação que tudo é feito;
4. Vassalo, um escravo que leva o Palio (guarda-sol que protege os reis);
5. Figuras da corte: príncipes, ministros, embaixadores, e outras figuras da corte;
6. Damas da corte, senhoras ricas que não possuem título nobiliárquicos;
7. Yabás, mais conhecidas como baianas, que são escravas;
8. Batuqueiros, que animam o cortejo, tocando vários instrumentos, como caixas de guerra, alfaias (tambores), gonguê, xequerês e maracás.


(Algumas semelhanças de construção da cena dos rituais religiosos africanos e do Cortejo de Maracatu nordestino: 1. Orixás do Candomblé - Autor: Carybé - Fonte: Internet;
2. Cortejo de Maracatu em Olinda, Pernambuco - Fonte: Internet)


Um dos integrantes do Maracatu rural do Carnaval pernambucano é o Caboclo de Lança, conhecido também como lanceiro africano. Ele teria sido o "caboclo de guiada" (o guerreiro de Ogum, no Candomblé). 


(Acima, integrante de uma tribo do sul da Etiópia, na África Oriental - Foto: Hans Silvester;
abaixo, Caboclo de Lança, um dos personagens tradicionais do Maracatu rural no
Carnaval pernambucano - Foto: Silvinha Rangel)


O fotógrafo Hans Silvester, conhecido por seu livro "Natural Fashion – Tribal Decoration from Africa" (Editora Thames & Hudson, 2008) registrou algumas tribos africanas com as quais conviveu durante seis anos. É possível compreender como a estética do personagem folclórico brasileiro Caboclo de Lança foi sendo construída ao longo dos séculos, se observarmos a forte influência do universo cultural africano durante o processo de colonização do Brasil. Foram diversos grupos étnicos que forçosamente atravessaram o Atlântico, trazendo cada qual sua crença e estrutura identitária, participando ativamente do processo de construção da mitopoética brasileira. Segundo Lévi-Strauss, "a mitopoética se origina, (...) em uma espécie de noûs poiétikos, ou de imaginação transcendental. Logo, a mitopoética consiste na elaboração de um conjunto a partir de resíduos e fragmentos de acontecimentos, testemunhas fósseis da história de um indivíduo ou de uma sociedade; é uma espécie de bricolagem intelectual; e a bricolagem é o modus operandi da mitopoética."


(Caboclo de Lança do Carnaval pernambucano - Fonte: O Nordeste)


As imagens abaixo trazem vestimentas adornadas que são utilizadas em rituais sagrados em regiões da Angola e por povos de língua Iorubá (Nigéria, Benin, Togo, Serra Leoa e República Dominicana). Se compararmos com o Caboclo de Lança (foto acima), poderemos observar alguma similaridade estética entre as peças de referência, o que ratifica nosso sincretismo cultural.


(1. Traje de Egum, ou Egun, da mitologia Iorubá. O termo "Egum" é utilizado no Candomblé e significa "alma" ou espírito de qualquer pessoa falecida iniciada ou não - Fonte: Internet; 
2. Vestimentas de Babá Egum, adornados com miçangas, búzios e espelhos costurados aos tecidos - Fonte: Catálogo do Museu Afro Brasil, Parque do Ibirapuera, São Paulo;
3. Kaviungo ou Kavungo, entidade angolana responsável pela saúde. O Kavungo é intimamente ligado à morte e sua saudação é: "Tateto Mateba Sakula Oiza - Dixibe", que significa "O Pai da Ráfia Está Chegando - Silêncio" - Fonte: Internet)


Composta por Chico Buarque e Francis Hime em 1984, a letra de "Vai passar" foi um samba-enredo  de versos libertários que abordavam, de modo alegórico, o fim da Ditadura Militar no Brasil. Entretanto, os versos de "Vai passar" também podem ser interpretados através da memória do processo colonizatório europeu. O "carnaval" cantado por Chico nos remeteria a um tempo-espaço em que a população se liberta de todas as repressões assumindo, nas máscaras, a sua verdadeira identidade.





Vai passar
(Composição: Chico Buarque e Francis Hime)

"Vai passar nessa avenida um samba popular
Cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar
Ao lembrar que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais

Num tempo página infeliz da nossa história,
passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia a nossa pátria mãe tão distraída
sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações

Seus filhos erravam cegos pelo continente,
levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
E um dia, afinal, tinham o direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia que se chamava carnaval,
o carnaval, o carnaval

Vai passar, palmas pra ala dos barões famintos
O bloco dos napoleões retintos
e os pigmeus do boulevard
Meu Deus, vem olhar, vem ver de perto uma cidade a cantar
A evolução da liberdade até o dia clarear

Ai que vida boa, ô lerê,
ai que vida boa, ô lará
O estandarte do sanatório geral vai passar
Ai que vida boa, ô lerê,
ai que vida boa, ô lará
O estandarte do sanatório geral... vai passar"


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Fontes:
(1) ARAÚJO, Hiram da Costa. Carnaval: seis milênios de história, Gryphus, Rio de Janeiro, 2002.

(2) "Commedia dell'arte" (www.wikipedia.org/Commedia dell'arte)


(3) "Zé Pereira" (www.wikipedia.org/Ze_Pereira)

(4) FERNANDES, Nelson da Nóbrega. O Carnaval e a modernização do Rio de Janeiro. Revista Geo-paisagem. Ano 2, nº 4, 2003, ISSN Nº 1677-650 X)