Macunaíma, o herói sem nenhum caráter

A obra "Macunaíma" foi escrita em 1928 pelo modernista Mário de Andrade. Carente de um editor para sua publicação, a obra foi impressa em uma tiragem de apenas 800 exemplares. A história tem como personagem que intitula a obra o índio Macunaíma, considerado um anti-herói (ou, o herói sem nenhum caráter). A natureza ambivalente e contraditória de Macunaíma está contida em seu próprio nome, composto da raiz maku ("mau") e o sufixo -ima ("grande"). Assim, o personagem Macunaíma configura-se sob um parâmetro dual: é bom e mau, corajoso e covarde, capaz e inapto


("O Batizado de Macunaíma", de Tarsila do Amaral, 1956 - Fonte: Internet)


O Modernismo brasileiro tinha como principal objetivo a reorganização dos elementos artísticos, exaltando a cultura popular nacional. Os Modernistas criticavam os valores antigos (o passadismo cultural) dominante no meio acadêmico, nos teatros e na política cultural vigente do Estado brasileiro.


"Macunaíma", o filme

Dirigido e produzido por Joaquim Pedro de Andrade em 1969, o filme "Macunaíma" foi baseado na obra modernista de Mário de Andrade. O longa foi lançado um ano após a decretação do AI-5 (Ato Institucional nº 5), enfrentando obstáculos impostos pela Ditadura Militar e sofrendo 15 cortes na primeira passagem pela censura.

A preocupação com o caráter nacional (a definição do que é brasileiro), a reorganização dos elementos artísticos e assimilação das ideias europeias (de modo a ajustá-las às singularidades culturais brasileiras) foi um dos traços mais marcantes do Modernismo. Nas palavras do próprio Joaquim, sobre a compreensão da influência antropofágica em seu longa: "A antropofagia não é uma idéia nova no Brasil. Mas eu demorei muito a entender o alcance político das idéias de Oswald de Andrade, por exemplo, que redigiu seu manifesto antropofágico antes de 1930. A antropofagia é a denúncia de uma condição primitiva de luta, uma luta resumida ao seu nível mais primário. Uma dentada, afinal de contas, destrói muito pouco." (1)

Esteticamente podemos categorizar o filme "Macunaíma" na intersecção entre o Modernismo brasileiro e o Cinema Novo (movimento cultural nasceu de jovens cineastas em resposta à falência de companhias cinematográficas paulistas na busca pela produção de um cinema barato). Com a ideia de "uma câmera na mão e uma idéia na cabeça", os filmes produzidos durante o Cinema Novo tinham como enfoque a realidade social, a política e o subdesenvolvimento do Brasil.


(Primeiro poster de divulgação do filme "Macunaíma", de 1969 - Fonte: Internet)


Podemos observar isto de modo bastante claro nos minutos iniciais do filme. O nascimento de Macunaíma faz alusão ao nascimento do próprio brasileiro. Logo após o parto, a "mãe" (uma mulher masculina e branca, como metáfora do europeu colonizador), possui apenas o sentimento de desprezo pelo filho. "O primeiro brasileiro consciente de si foi, talvez, o mameluco, esse brasilíndio mestiço na carne e no espírito, que não podendo identificar-se com os que foram seus ancestrais americanos - que ele desprezava -, nem com os europeus - que o desprezavam -, e sendo objeto de mofa dos reinóis e dos lusonativos, via-se condenado à pretensão de ser o que não era nem existia: o brasileiro." (2)


(Cena do filme "Macunaíma", de Joaquim Pedro de Andrade. 
Macunaíma, interpretado por Grande Otelo, sendo parido pela "mãe",
interpretado pelo ator Paulo José)


Outra metáfora para a "mãe" ser configurada como uma mulher masculina talvez se deva ao fato de que, para os índios, "a mulher é apenas um saco em que o macho deposita sua semente. Quem nasce é o filho do pai, e não da mãe, assim visto pelos índios." (3) Sob uma ótima neo-antropofágica do Tropicalismo, o filme "Macunaíma", de Joaquim de Andrade (filho de Rodrigo Melo Franco de Andrade, o fundador do IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), pode ser considerado como uma alegoria do Brasil moderno. Segundo Darcy Ribeiro, "o brasilíndio como o afro-brasileiro existiam numa terra de ninguém, etnicamente falando, e é a partir dessa carência essencial, para livrar-se da ninguendade de não-índios, não-europeus e não-negros, que eles se vêem forçados a criar sua própria identidade étnica: a brasileira." (4)

Durante o longa os demais personagens (Jiguê, Sofara, Maanape, Ci e Venceslau Pietro Pietra) estruturam a premissa modernista da obra de Mário de Andrade. Venceslau Pietro Pietra, por exemplo, reflete a cultura aristocrática vigente, que exaltava o Romantismo do século XIX europeu, descartando a cultura popular brasileira.


(Em "Macunaíma", à esquerda, Grande Otelo como Macunaíma negro; à direita,
Macunaína "renascido" como homem branco, interpretado pelo ator Paulo José)


A transformação de Macunaíma criança para a idade adulta é marcada visivelmente pela transformação de sua cor. Não é possível perceber nenhum tipo de envolvimento emocional entre Macunaíma (já "branco") e seu primeiro descendente (interpretado novamente por Grande Otelo). As poucas falas com o filho resumem-se em: "Vai, filho. Cresce depressa para você ir a São Paulo e ganhar muito dinheiro."


(Cena de "Macunaíma", de 1969 - À esquerda, o personagem Macunaíma "branco",
interpretado por Paulo José; à direita, seu filho, interpretado por Grande Otelo)


Darcy Ribeiro, em "O Povo Brasileiro", analisa que o reconhecimento de um brasileiro por seu concidadão talvez se dê justamente por sua não-identificação, sendo "bem provável que o brasileiro comece a surgir e reconhecer-se a si próprio mais pela percepção de estranheza que provocava no lusitano, do que por sua identificação como membro das comunidades socioculturais novas, porventura também desejoso de remarcar sua diferença e superioridade frente aos indígenas." (5)

O filme "Macunaíma", tendo como história base a obra de Mário de Andrade, ganha um corpo original na direção de Joaquim Pedro de Andrade; pode-se dizer que o longa seria uma espécie de crítica alegórica ao período da Ditadura Militar no Brasil. "Macunaíma, o herói sem nenhum caráter" torna-se o símbolo de um Brasil em crise de identidade, sem noção de coletividade, que devora a si mesmo.


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Fontes:
(1) "Macunaíma" (www.febf.uerj.br/tropicalia/tropicalia_joaquim_pedro.html)

(2) RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. Ed Companhia das Letras, São Paulo, 1995.

(3) Idem, Ibidem, pg. 108.

(4) Idem, Ibidem, pg. 131.

(5) Idem, Ibidem, pg. 127.

3 comentários:

  1. MUito bom encontrar um Blog irmão no que diz respeito ao compromisso com a Cultura Brasileira.
    Parabens Anna.
    Se quiser complementar esta matéria com uma exposição que fiz em Araraquara para o SESC SP chamada "Na Terra de macunaima" que homenageava os dias de "possessão preparada" de Mário de Andrade no sítio do Tio Pio na cidade. Segue o link com as fotos e Texto sobre a Exposição:
    http://www.flickr.com/photos/jeffcelophane/sets/72157625503575067/
    Um forte abraço cultural

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  2. Parabéns pelo espaço. A cultura brasileira precisa ser reapropriada pelo brasileiro e seu blog auxilia nessa expansão de valores culturais e reflexões pertinentes ás origens de uma brasilidade cidadã. Pena que os jovens do Brasil são educados hoje à margem de um caráter nacional ou cidadão.

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  3. Cocada Preta é a última cocada da verdadeira cultura brasileira. Cultura antropofágica que mescla as culturas do mundo inteiro. Excelente Blog Cocada Preta é o mais fantástico mecanismo cultural da Internet. Matéria sobre Macunaíma foi a prova dos 9. Anna Anjos, intelectual das artes nativas e da brasilidade original, está de parabéns.

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